quarta-feira, 13 de abril de 2011

A PRISÃO CIVIL DO DEC. LEI 911/69 À LUZ DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45

                   Já há algum tempo a prisão civil prevista no Dec. Lei 911/69, vem sendo alvo de questionamentos vários no mundo jurídico Pátrio, culminando com desinteligência de entendimentos nas decisões já sedimentadas no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, porquanto, ao passo que a mais alta Corte de Justiça Comum do País (STJ) entende ser incabível a prisão do devedor em casos desse jaez, a Corte Constitucional (STF) entende ser admissível por encontrar eco na ressalva existente no comando do art. 5º, LXVII, da Carta Magna.
A solução à questão encontra ressonância sempre que, deparando-se o julgador com a possibilidade de cerceamento do segundo maior bem componente do patrimônio humano, este indissociável de sua dignidade, qual seja, a liberdade, posto que o maior bem é o direito à própria vida,  busque verificar em profundidade no ordenamento jurídico pátrio, principalmente no que concerne às últimas alterações nele introduzidas com o advento da emenda constitucional 45.

                                               Inegável o fato de que a liberdade é um componente básico da dignidade humana e da cidadania. O homem que perde o seu direito de ir e vir se vê tolhido em seu potencial humano como elemento atuante no seu meio social. Passa a ser mero espectador do passar do tempo, impossibilitado de participar ou modificar, na medida de suas possibilidades máximas, os acontecimentos em seu curso. O Estado Brasileiro, consoante dispõe o art.1º,II e III, tem como princípios fundamentais a cidadania e a dignidade da pessoa humana, destarte, estes devem ser preservados, protegidos por todo conjunto de normas que formam o arcabouço jurídico regulamentador da vida em sociedade no Brasil.

                                               A constituição é a luz segura que deve iluminar o caminho, de forma a elucidar, apontar a decisão, não perfeita, pois esta só a Deus pertence, mas a juridicamente correta, a qual contempla a vontade de nosso ordenamento no que tange ao deslinde da questão. Destarte, reconhecendo o valor da liberdade, apenas em duas situações o texto constitucional possibilita, em tese, a prisão por dívida, nos preciso termos do art. 5º, LXVII, qual seja a do inadimplente inescusável de obrigação alimentar e a do infiel depositário.
Por seu turno, o § 2º do mesmo art. 5º determina que,    "os direitos e garantias  expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Surge, então o conflito entre a disposição que possibilitava a prisão por dívida civil, art.5º, LXVII e a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida também como Pacto de San José da Costa Rica, o qual não admite tal prisão. A controvérsia daí oriunda foi decidida, num primeiro instante pelo STF, o qual manteve o entendimento da constitucionalidade da prisão por dívida civil nos dois casos já particularizados.
O Superior Tribunal de Justiça - STJ -, por seu turno, em reiterados julgamentos vem entendendo ser incabível a prisão do depositário infiel que tenha assumido essa condição em garantia de crédito, tal como concebido no Dec. Lei 911/69,
Posteriormente às distinta decisões do  Pretório Excelso e do Superior Tribunal de Justiça, eis que exsurge em nosso ordenamento constitucional a Emenda 45, esta introduzindo duas novas disposições pertinentes à nossa análise, primeiro, o § 3º ao art. 5, LXXVIII, litteris: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos  que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
Segundo, estatui o art. 8º da referida emenda: “As atuais súmulas  do Supremo Tribunal  Federal somente produzirão efeito vinculante após sua confirmação por dois terços dos seus integrantes e publicação na imprensa oficial”.
A par do exposto, no sentido de garantir a máxima efetividade às disposições constitucionais, estas tendo como pedra basilar a dignidade da pessoa humana, emerge o entendimento inafastável de que esta máxima efetividade só se dará de modo satisfatório entendendo-se que as disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos têm posição hierárquica constitucional, sendo recepcionadas, postos anteriores à Emenda 45, neste patamar. Isto porque a constituição tem como fundamento, expresso taxativamente no seu art.1º, a dignidade da pessoa humana, um direito humano.
Analisando-se também de forma sistemática a nova emenda, conforme preleciona José Carlos Francisco[1] vemos que ali não se faz nenhuma ressalva no que tange à recepção dos tratados, coisa que sói acontece no que tange à súmula vinculante, como exposto no art. 8º supra, de sorte que não há disposição do tipo: “os atuais tratados e convenções só serão equivalentes às emendas constitucionais caso confirmados através do procedimento legislativo adequado à sua produção”. Destarte,   a efetividade dos tratados e convenções no sentido de resguardar o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, princípio basilar do ordenamento jurídico pátrio seria ferida mortalmente caso acolhêssemos entendimento diverso.
Ademais, impende não olvidar aqui o princípio constitucional da proporcionalidade, o qual, na lúcida exposição do mestre Paulo Bonavides[2], “pretende instituir uma relação entre fim e meio, confrontando o fim e o fundamento de uma intervenção com os efeitos desta para que se torne possível um controle do excesso “,“protegendo, pois, a liberdade, ou seja, amparando os direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade entende principalmente, como disse Zimmerli[3], com o problema da limitação do poder legítimo, devendo fornecer o critério das limitações à liberdade individual”.
Impositivo, portanto, a recepção do princípio constitucional da proporcionalidade, de forma a afastar, com fundamento no nosso ordenamento, máxime após o advento da Constituição Federal em 1988 e sua reforma preconizada pela emenda constitucional nº 45, as disposições do Decreto Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969 que atentem contra a liberdade individual, a par das garantias de natureza constitucional surgidas após a derrocada do estado de arbítrio militar que instaurou-se após o golpe militar de 1965. Quando da contraposição de dois bens jurídicos, o patrimônio alienado e a liberdade individual do alienante, forçoso o afastamento por parte da jurisdição de qualquer disposição tendente a privilegiar aquele em detrimento deste, posto que inadequada e desproporcional tal medida na órbita civil, devendo no nosso estado de direito a privação da liberdade se tornar admissível apenas na órbita penal, conforme reconhecido pelo próprio decreto emanado da truculência do período, o qual no §8º do seu art. 1º pontifica: “O devedor que alienar, ou der em garantia a terceiros, coisa que já alienara fiduciariamente em garantia, ficará sujeito à pena prevista no art. 171,§2º, inciso I, do Código Penal”.
Portanto, é de se concluir, que a prisão civil do depositário infiel que tenha assumido essa condição em razão de garantia de crédito, tal qual recepcionado pelo Dec. 911/69, é flagrantemente inconstitucional, devendo o julgador declarar incidentalmente a inconstitucionalidade da provisão jurisdicional pedida, qual seja, a prisão civil do depositário infiel, desde que se trate de contrato civil de alienação fiduciária em garantia.


[1] Reforma do Judiciário/ Coordenadores André Ramos Tavares, Pedro Lenza e Pietro de Jesús Lora Alarcón, Editora Método, São Paulo, 2005.
[2] Curso de Direito Constitucional/ Paulo  Bonavides, Malheiros Editores, São Paulo, 2001
[3] Ulrich Zimmerli, “ Der Grundsatz der Verhältnismässigkeit im öffentlichn Recht”, in Zeitschrift.

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