quinta-feira, 19 de maio de 2011

A INCONSTITUCIONALIDADE DA EC Nº 41, DECORRENTE DAS CLÁUSULAS PÉTREAS IMPOSTAS PELO PODER CONSTITUÍNTE ORIGINÁRIO AO PODER CONSTITUÍNTE DERIVADO.

Nos últimos tempos a Constituição Federal vem sendo alvo de sucessivas modificações sob as mais dispares justificativas e ao labor das conveniências do governante de plantão. A pretexto de possibilitar a governabilidade do País, quando se sabe que a realidade é outra bem diferente, os sucessivos estabilishiment, vêm perpetrando mediante emendas à Constituição, verdadeira violência aos direitos do cidadão e um desrespeito inominável à vontade do legislador constituinte originário, sendo uma delas a de número 41 que alterou o inciso XI do art. 37 da Carta Magna, de sorte que inquestionavelmente subtraiu direitos adquiridos, inerentes à irredutibilidade dos proventos, vencimentos dos servidores públicos e subsídios dos agentes políticos aposentados ou não, e que se encontram protegidos por cláusulas pétreas das quais o legislador constituinte derivado anda a fazer tabula rasa.
Uma leitura singela ao artigo 9º da citada emenda basta a esta conclusão:
"Art. 9º. Aplica-se o disposto no art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias aos vencimentos, remunerações e subsídios dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza".
            Uma boa exegese do tema reclama a transcrição do art. 17 do ADCT, a que remete o art.9º da EC nº 41:
"Art. 17 – Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, nesse caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título".
            Do dispositivo resulta clara a pretensão do legislador derivado de reavivar a eficácia do art. 17 do ADCT, com o deliberado objetivo de amesquinhar a remuneração dos agentes políticos que legitimamente percebem subsídio acima do novo teto constitucional.
            Ocorre que o art. 17 do ADCT, enquanto manifestação do Poder Constituinte originário – incondicional, autônomo e inicial – pode alterar situações constituídas anteriormente à promulgação da Constituição. Porém emenda constitucional, porque decorrente do Poder Constituinte reformador – derivado, condicionado e subordinado – está sujeita a limites materiais, que a impedem de alcançar direitos e garantias individuais do cidadão.
            O método de elaboração legislativa utilizado no art. 9º da EC n 41, que, em vão, procura socorrer-se do art. 17 do ADCT, constitui indisfarçável tentativa de burla à garantia individual do direito adquirido, consagrado no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.
            Em julgado recente (RE n. 298.695-0/SP - 06/08/2003), decidiu o Supremo Tribunal Federal que "a garantia da irredutibilidade de vencimentos é modalidade qualificada de direito adquirido e projeta-se para o futuro, de modo a assegurar o servidor contra a redução de estipêndio licitamente reajustado".
            O Ministro Carlos Mário Velloso, em artigo dedicado ao tema, publicado em Temas de Direito Público, Belo Horizonte, l994, p.448/449 pondera que: "..um direito adquirido por força da Constituição, obra do Poder Constituinte originário, há de ser respeitado pela reforma constitucional, produto do Poder Constituinte instituído ou de 2º grau, vez que esse é limitado, explícita e implicitamente pela Constituição".

Daí porque o Excelso Pretório, no julgamento da ADIN nº 939-DF, concluiu "verbis":
"Uma emenda à Constituição, emanada, portanto, de Constituinte derivado, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional pelo STF, cuja função precípua é a guarda da Constituição (art.l02,I,"a" da CF (...)",cfe RTJ 151/755);
Dentro do contexto, forçoso é admitir-se a existência de direito adquirido contra Emenda Constitucional, pelo limite material constante do art.60,IV da CF/88 referente à cláusula pétrea – direitos e garantias individuais c/c art.5º, XXXVI (a lei não prejudicará o direito adquirido, entendido esse em seu sentido amplo), tendo o STF entendido que os direitos individuais são limites (limites formais, materiais e circunstanciais) à emenda e não se restringem aos do art.5º, podendo, neles, estarem inclusos outros, a exemplo dos direitos tributários (ADIN 939-7-DF,Rel. Min.Sydney Sanches e ADIN 829-DF,Rel. Min.Moreira Alves, já referidas).
            Assim não se pode olvidar, que após o advento da Constituição cidadã de l988, esse assunto não desperta maior trabalho de interpretação na visão do próprio STF, senão vejamos: Quando o Constituinte Originário, de 1º grau, ilimitado, resolveu pôr um final nos super - salários, dos "marajás", dispondo no art. 17 do ADCT da CF/88 ""Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título". o que fez o STF?
            No RE 141788.9-CE, DJU 18.6.93, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, o STF deixou definitivamente esclarecido que as chamadas vantagens pessoais ou individuais estão fora do teto remuneratório. Naquele julgamento assim se pronunciou o conspícuo Ministro:
Ora, mesmo quando o Constituinte Originário, de la. categoria, ilimitado, determinou no art. 17 da ADCT da CF/88 que se respeitasse o teto salarial, aquela mais alta Corte Judicante (STF) decidiu que as VANTAGENS PESSOAIS/INDIVIDUAIS poderiam permanecer fora do teto, em respeito à clausula pétrea do direito adquirido, como aceitar esse mesma "ordem" vinda agora do Constituinte Derivado, de 2a.categoria, limitado?”
Por outro lado, sobre os limites do Poder Constituinte derivado, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 466/DF, em que foi Relator o eminente Ministro CELSO DE MELLO (RTJ 136/26), fez a seguinte advertência:
O Congresso Nacional, no exercício de sua atividade constituinte derivada e no desempenho de sua função reformadora, está juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte originário que, a par de restrições de ordem circunstancial, inibitórias do poder reformador (CF, art. 60, § 1º), identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível e imune à ação revisora da instituição parlamentar. As limitações materiais explicitas, definidas no § 4º do art. 60 da Constituição da República, incidem diretamente sobre o poder de reforma conferido ao Poder Legislativo da União, inibindo-lhe o exercício nos pontos ali discriminados. A irreformabilidade desse núcleo temático, acaso desrespeitada, pode legitimar o controle normativo abstrato, e mesmo a fiscalização jurisdicional concreta, de constitucionalidade”. 
E ainda
Emendas à Constituição – que não são normas constitucionais originárias – podem, assim, incidir, elas próprias, no vício de inconstitucionalidade, configurado pela inobservância de limitações jurídicas superiormente estabelecidas no texto constitucional por deliberação do órgão exercente das funções constituintes primárias ou originárias, como tem reconhecido a doutrina, expressa no magistério de Otto Bachof, “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, págs. 52/54, 1977, Atlântida Editora, Coimbra; Jorge Miranda, “Manual de Direito Constitucional”, tomo II/287-294, item nº 72, 2ª ed., 1988, Coimbra Editora; Maria Helena Diniz, “Norma Constitucional e seus efeitos”, pág. 97, 1989, Saraiva; J. J. Gomes Canotilho, “Direito Constitucional”, págs. 756/758, 4ª ed., 1987, Almedina; José Afonso da Silva, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, págs. 58/60, 5ª ed., 1989, RT, entre outros” (RTJ 136/32).  
Lembra, também, ALEXANDRE DE MORAES (idem, págs. 1.085/86) “que a grande novidade do referido art. 60 está na inclusão, entre as limitações do poder de reforma da Constituição, dos direitos inerentes ao exercício da democracia representativa e dos direitos e garantias individuais, que, por não se encontrarem restritos no rol do art. 5º, resguardam um conjunto mais amplo de direitos constitucionais de caráter individual dispersos no texto da Carta Magna”.
Mas não é só segundo a abalizada cátedra de JOSÉ AFONSO DA SILVA (idem, pág. 628), a garantia atinente à irredutibilidade de vencimentossignifica que nem o padrão, nem os adicionais ou outras vantagens fixas poderão ser reduzidos”.
Manifestando-se a esse respeito, assim deliberou o Plenário do Colendo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 2.075 MC/RJ (D. J. de 27.6.2003, Seção 1, pág. 28):
A garantia constitucional da irredutibilidade do estipêndio funcional traduz conquista jurídico-social outorgada, pela Constituição da República, a todos os servidores públicos (CF, art. 37, XV), em ordem a dispensar-lhes especial proteção de caráter financeiro contra eventuais ações arbitrárias do Estado. Essa qualificada tutela de ordem jurídica impede que o Poder Público adote medidas que importem, especialmente quando implementadas no plano infraconstitucional, em diminuição do valor nominal concernente ao estipêndio devido aos agentes públicos.
A cláusula constitucional da irredutibilidade de vencimentos e proventos – que proíbe a diminuição daquilo que já se tem em função do que prevê o ordenamento positivo (RTJ 104/808) – incide sobre o que o servidor público, a título de estipêndio funcional, já vinha legitimamente percebendo (RTJ 112/768) no momento em que sobrevém, por determinação emanada de órgão estatal competente, nova disciplina legislativa pertinente aos valores pecuniários correspondentes à retribuição legalmente devida”.
Explicitando o alcance desse princípio constitucional, disse o preclaro Relator, proficiente Ministro CELSO DE MELLO, em seu erudito voto:
Esta Corte, pronunciando-se sobre o alcance da cláusula constitucional da irredutibilidade de vencimentos, deixou assentado que a garantia em questão “veda a redução do que se tem” (RTJ 104/108, Rel. Min. MOREIRA ALVES).
O Supremo Tribunal Federal, tendo presente a concreta abrangência desse postulado fundamental, enfatizou que “... a garantia constitucional de irredutibilidade de vencimentos (...) torna intangível o direito que já nasceu e que não pode ser suprimido...” (RTJ 118/200, Rel. Min. CARLOS MADEIRA), pois, afinal, a garantia da irredutibilidade incide sobre aquilo que, a título de vencimentos, o servidor já vinha percebendo (RTJ 112/768, Rel. Min. ALFREDO BUZAID).
Cumpre ter presente, neste ponto, a sempre lembrada decisão desta Suprema Corte, em período no qual a garantia em causa somente dizia respeito aos membros do Poder Judiciário, na qual se assentou, concernentemente ao tema em debate, que “O que a irredutibilidade veda é a diminuição, por lei posterior, dos vencimentos que o juiz, em exercício antes de sua vigência, estivesse recebendo” (RTJ 45/353-355, Rel. Min. EVANDRO LINS).
Esse entendimento – impõe-se enfatizar – tem sido reiterado em diversos pronunciamentos dessa Corte Suprema, nos quais, por mais de uma vez, já se proclamou que a garantia constitucional da irredutibilidade de vencimentos proíbe que o estipêndio funcional seja reduzido ou afetado, por ato do Poder Público, em seu valor nominal (RTJ 105/671-675, Rel. Min. SOARES MUÑOZ)”.
Verifica-se, portanto, consoante o ensinamento do Supremo Tribunal Federal, que a cláusula constitucional da irredutibilidade de vencimentos e proventos, torna imune à redução o “montante global da remuneração”, percebida pelos servidores públicos (SS nº 694/ES, Min. OCTAVIO GALLOTTI, D. J. de 20.9.94), caracterizada como “uma modalidade qualificada de direito adquirido”, que protege, também, as gratificações individuais incorporadas, excluídas, pelo poder constituinte originário, do teto constitucional (art. 37, XI, e art. 39, § 1º, combinados, da CF/88).
A reforma operada na Constituição Federal de 1988, pelo Congresso Nacional, por meio da EC nº 41, de 19.12.2003 (DOU de 31.12.2003), determinou, em linha contrária, que se considere, na fixação do teto dos vencimentos/proventos, as “vantagens pessoais”, inclusive a “parcela recebida em razão de tempo de serviço” (art. 37, XI, com a redação da EC nº 41/2003, e arts. 8º e 9º da mesma emenda constitucional), expressamente ressalvadas pelo poder constituinte originário do limite máximo de remuneração dos servidores públicos (art. 39, § 1º, da CF/88, texto primitiva).
           Diante dos argumentos jurídicos esposados pela mais alta corte de justiça do País, penso ser preciso se entender, entender mesmo, sem paixão ou preconceitos, que ninguém é simplesmente favorável a que se perceba salários, vencimentos, proventos, estipêndios, etc, em valores acima de um teto que, antes de tudo, é moralizador e bom para a Sociedade. O limite máximo salarial é o ideal, mormente em um País como o Brasil, em que a grande massa brasileira de trabalhadores ganha menos de dois salários mínimos.
            Todavia, também é preciso compreender, compreender mesmo, da mesma forma sem paixão e sem preconceito, que não compete ao Poder Judiciário deixar que uma cláusula pétrea, como o direito adquirido, seja eliminada pelo Constituinte Derivado, de 2a. categoria, limitado, que neste momento está atingindo os ganhos salariais dos servidores porque, amanhã, poderá vir também a eliminar a ampla defesa, o contraditório, considerar lícita provas ilícitas ou obtidas ilicitamente mediante tortura ou outros meios que a própria Imprensa termina também por não aceitar e, quem sabe, até chegar ao ponto de abolir os direitos à saúde, à liberdade de imprensa, a liberdade individual e à própria vida. É aí?
            O Poder Judiciário não pode ser comprometido com planos econômicos de nenhum Governo. Não o foi com o de Fernando Collor de Melo. Não o foi com o de Fernando Henrique Cardoso e não deverá sê-lo com o atual nem com os futuros. O seu compromisso - do Poder Judiciário - terá de ser sempre com a lei constitucional e a Constituição de seu País.
A par do cumprimento da Constituição por todos os súditos, e particularmente pelos Parlamentares, pelos juízes e pelo estabilishiment de plantão, é de se lembrar à erudição do famigerado Ministro Celso de Melo que em voto proferido em Ação Direta de Inconstitucionalidade pontificou:
"Uma Constituição escrita não configura mera peça jurídica, nem é simples estrutura de normatividade e nem pode caracterizar um irrelevante acidente histórico na vida dos Povos e nas Nações. Todos os atos estatais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica dos Tribunais, especialmente porque são írritos, nulos e desvestidos de qualquer validade. A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste - enquanto for respeitada - constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos" (ADIN 293-7 - DF, Rel. Min. Celso de Melo, STF, DJU de 16/04/93, pág. 6429).
"Traidor da Constituição é traidor da Pátria "(Ulisses Guimarães).
            O Juiz, portanto, é obrigado a cumprir e fazer cumprir as leis constitucionais e a Constituição. Gostem ou não. Aceitem ou não, porque o traidor da Constituição será mais indigno quando se tratar de um magistrado que ao assumir o cargo mormente por concurso público de provas e títulos, jurou cumpri-la e para tanto lhes é outorgado pela própria Constituição as garantias da vitaliciedade, da irredutibilidade dos subsídios e da inamovibilidade.
Conclui-se, portanto, que na senda da pacífica e torrencial jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, forçoso é admitir, data venia, que, no exercício de competência constituinte derivada, em face da proibição de serem propostas emendas que atentem contra “os direitos e garantias individuais”, não pode o poder reformador, seguir contra aquela limitação material explícita, subtrair da imunidade ao teto remuneratório “gratificações pessoais”, já incorporadas aos estipêndios dos funcionários públicos diante do obstáculo intransponível do art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal.

JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA
Juiz de Direito – Professor Universitário – Especialista em Direito Civil