sexta-feira, 15 de abril de 2011

A INCONSTITUCIONALIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 1° DA LEI PENAL TRIBUTÁRIA BRASILEIRA.

No Estado Democrático de Direito não é admissível que o legislador incrimine qualquer comportamento, a seu alvedrio, descrevendo-o em lei, sob o pretexto de que assim ter-se-á atendido o requisito básico do Direito Penal, consubstanciado na fórmula nullum crimem nulla poena sine lege, denominado tecnicamente de princípio da reserva legal, recepcionado nos comandos dos arts. 5º, XXXIX, da CF e 1º do CP. De fato não basta a previsão legal de uma conduta acoplada a uma pena para torná-la criminosa, porque o Direito é um todo harmônico, encimada pela Constituição, de maneira que a norma penal precisa atender aos princípios firmados na Lei Maior, não sendo, portanto possível que o legislador apene um comportamento que ela permita. O princípio em estudo surgiu historicamente sob o impulso do constitucionalismo, que avassalou o Ocidente na esteira da Revolução Francesa. Anteriormente, o absolutismo real não conhecia essa limitação, sendo lícito aos monarcas de então a prisão de qualquer súdito que não pertencesse a nobreza por simples determinação denominada na França lettre de cachet, independentemente de prévia lei incriminadora ou de acusação formal.
Na modernidade, e isso é o óbvio, se fosse permitido ao legislador incriminar qualquer conduta imaginável, desde que sob a veste da lei, não se pode negar que se estaria regredindo à época pré – revolucionária, apenas com o diferencial de que o legislador necessitaria de uma lei, enquanto ao monarca absolutista das eras passadas suficiente seria expedir uma ordem individual. Em verdade, no Estado de Direito, o requisito basilar de qualquer lei é a conformidade da norma com a Constituição, qualquer que seja a matéria tratada.
No âmbito das leis penais tributárias, adverte BLUMENSTEIN (in. Sistema di diritto delle imposte, Milano, Giuffrè, 1954, p. 287), que “em amplos círculos a consciência popular ainda se recusa a reconhecer as infrações às normas do Direito dos impostos como verdadeiros e próprios ilícitos penais, nelas vendo antes uma forma de defesa da liberdade natural contra as regras coativas do Fisco”.
A lição do conspícuo tributarista, segundo JUARY C. SILVA (Elementos de Direito Penal Tributário, Saraiva, 1998), parece encontrar ressonância indiscutível no Brasil, tanto assim que ao exame da constitucionalidade dos dispositivos da Lei 8.237/90, a certeza lógica de que alguns deles estão flagrantemente em descompasso da Magna Carta.
Adverte o escolialista que as figuras penais do art. 1º dessa lei não se integram apenas mediante as condutas previstas nos incisos I a V, senão através da ação geral referida no caput mais a conduta particular contida nos incisos. De fato o núcleo do tipo do inciso V do art. 1º da Lei 8.137/90, que prevê a pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa, é descrito como a conduta de “negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornece-la em desacordo com a legislação”. Já o parágrafo único do mesmo dispositivo legal determina que “a falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo máximo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V”.
A exegese do dispositivo nos leva à convicção de que o legislador tributarista não foi feliz em sua intenção porquanto a fatispécie do inciso V não se refere a exigência de autoridade, resumindo-se à negativa ou omissão de fornecimento de nota fiscal ou equivalente, ou fornecimento desta em desacordo com a legislação; logo, a exigência decorre da própria lei, dispensando qualquer ato de autoridade.
O preceito torna-se ainda mais absurdo quando autoriza a que o prazo de cumprimento da exigência seja reduzido pela autoridade, dos dez dias previstos para “horas”, indeterminadamente, “em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou dificuldade quanto ao atendimento da exigência”, equiparando essa conduta omissiva à infração prevista no inciso V do artigo, o que levou JUARY C. SILVA (1998, p. 121) a afirmar que, “em substância esse parágrafo não se filia dogmaticamente ao caput, como de boa técnica legislativa, e, mirabile dictu, erige mera omissão a figura típica penal, a critério do Fisco, algo que, tanto quanto se saiba nenhum regime autocrático jamais fez no mundo ocidental”.
Dentro do contexto, não se há de negar que o dispositivo em comento fere escandalosamente o princípio da reserva legal, ao deixar a colmatação da fatispécie penal ao arbítrio de autoridade administrativa, o que implica dizer que faz tabula rasa do princípio iluminístico consagrado na fórmula nullum crimem sine lege, como é do Direito Positivo brasileiro. Esqueceu-se o legislador de que em todas as figuras dos incisos a completude da fatispécie inicia-se como a conduta nele prevista de “suprimir ou reduzir tributo”. Sem ela, os comportamentos descritos nos incisos tornam-se penalmente irrelevantes.
Matéria penal, como é de conhecimento basilar, é de Direito estrito, de modo que a incriminação deve ser precisa caracterizando nitidamente a conduta visada, sem necessidade de recurso a ato específico de autoridade e tampouco sendo admissível a variação da fatispécie, ao talante da autoridade. Assentes tais pressupostos, que ao menos aparentemente ninguém contesta, forçoso é concluir-se que o parágrafo único do art. 1º da Lei 8.137/90, padece de manifesta inconstitucionalidade, por não se amoldar ao requisito da legalidade, que se diga, não se confunde com a simples redação sob a forma da lei, exigindo, outrossim, conteúdo pertinente aos comandos incriminatórios e compatibilizados com princípios insertos no texto constitucional.

JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA
Juiz de Direito – Especialista em D. Civil – Prof.º do UNIPÊ

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