sexta-feira, 15 de abril de 2011

INTERPRETAÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NO SISTEMA CIVIL BRASILEIRO

Um dos temas jurídicos tratados no atual Código Civil e de grande implicação no cotidiano dos jurisdicionados é inerente ao chamado abuso de direito. O art. 187 do Diploma Substantivo Civil comanda que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes”.  
A redação do dispositivo confunde inquestionavelmente abuso de direito com ato ilícito, dando àquele tratamento de ilícito, quando, de acordo com a melhor e mais moderna doutrina, são institutos totalmente distintos. Na verdade conforme pondera Heloisa Carpena (Abuso de direito nos contratos de consumo. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 58), o legislador misturou os dois institutos, analisando-os apenas pelos efeitos, o que pode tornar insuficiente a sanção atribuída aos casos de abuso de direito.
O abuso de direito ocorre, quando uma pessoa, ao exercer direito legítimo excede os limites impostos por seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Uma pessoa tem o direito de construir em seu terreno, dentro dos limites legais. Acontece que, mesmo respeitando esses limites, certo indivíduo constrói em seu imóvel, com o objetivo manifesto, de dificultar o trânsito do vizinho. Estaria assim cometendo abuso de direito. O ato é formalmente correto, porquanto a conduta do agente se deu dentro dos limites formais de seu direito, está assim preenchida a estrutura normativa do direito, entretanto foram ultrapassados os limites da boa-fé; não foi cumprido o valor normativo que é o fundamento de validade do direito.
No ato ilícito, o agente pratica ato contrário ao Direito, que, nem na aparência, se pode confundir com o exercício legítimo de direito subjetivo. Se o cidadão mata alguém, ou se por culpa bate o carro, não está exercendo nenhum direito fora dos limites; está agindo contra o Direito, pura e simplesmente. Se tanto no abuso de direito, quanto no ato ilícito, o agente pratica ato antijurídico, no abuso de direito, há o exercício legítimo de um direito subjetivo, que ultrapassa certos limites, enquanto no ato ilícito, tal não ocorre. Em outra dicção, o ato ilícito nada tem de exercício legítimo de direito.
Em alguns casos, o ato ilícito pode derivar do exercício de um direito, que ultrapassa seus limites formais. Tome-se como exemplo o fato de uma pessoa dirigir em alta velocidade e acima do permitido para o local. Estará praticando ilícito administrativo, posto que ao exercer o seu direito de dirigir, violou o limite formal de velocidade. Não se trata de abuso de direito, uma vez que o ato é formalmente antijurídico. Ninguém tem o direito legítimo de dirigir acima da velocidade razoavelmente permitida. Mas, ao contrário, se uma pessoa, propositadamente, dirige em velocidade extremamente baixa, com o objetivo de travar o trânsito, estará cometendo abuso de direito. É que, na aparência o ato é perfeito, legítimo. Formalmente, essa pessoa não está cometendo nenhuma antijuridicidade. Ocorre que, do ponto de vista valorativo, está ultrapassando os limites impostos pela boa-fé.
A distinção entre os dois institutos em estudo é de importância impar para os operadores do direito, porquanto as conseqüências do ato abusivo podem ser diferentes das do ato ilícito.
A prática do ato ilícito, em regra gera o dever de indenizar, salvo as excludentes de caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima. Já o abuso de direito, pode gerar a obrigação de indenizar, como pode derivar para outra espécie de sanção. Tudo dependerá do caso concreto.
Nos exemplos acima citados, notadamente o último, as conseqüências do abuso de direito ao dirigir em baixa velocidade serão idênticas à de um ato ilícito: o culpado deverá indenizar os danos eventualmente causados a terceiros. Mas se tomarmos outro exemplo, veremos que não será a indenização a conseqüência. Imagine-se um contrato em que uma pessoa se obriga a realizar para outra, serviços de pintura ou de marcenaria, incumbindo ao credor dos serviços a escolha. Este, de má-fé, sabendo que será muito mais dificultoso para o devedor realizar os serviços de pintura, escolhe estes últimos, com a nítida intenção de prejudicar o devedor, onerando-o excessivamente. Nesse caso, o credor está agindo dentro dos limites formais de seu direito de escolher. Todavia, foram, desenganadamente violados os limites da boa-fé. Diante disso, poderá o devedor, provando a má-fé do credor, ou seja, provando o abuso de direito, exigir judicialmente que o credor aceite os serviços de pintura, ou libere-o da obrigação. No caso, não há que se falar em indenização, uma vez que não houve dano. Vê-se, pois, que, nesta hipótese de abuso de direito, as conseqüências foram diferentes das de um ato ilícito.
Diante do exposto, penso, cumprir aos operadores do direito, e mais precisamente aos seus aplicadores – juízes – não confundir os dois institutos, como fez o legislador civil de 2002.

JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA
Juiz de Direito – Especialista em Direito Civil – Prof.º. do UNIPÊ.



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