quinta-feira, 19 de maio de 2011

A INCONSTITUCIONALIDADE DA EC Nº 41, DECORRENTE DAS CLÁUSULAS PÉTREAS IMPOSTAS PELO PODER CONSTITUÍNTE ORIGINÁRIO AO PODER CONSTITUÍNTE DERIVADO.

Nos últimos tempos a Constituição Federal vem sendo alvo de sucessivas modificações sob as mais dispares justificativas e ao labor das conveniências do governante de plantão. A pretexto de possibilitar a governabilidade do País, quando se sabe que a realidade é outra bem diferente, os sucessivos estabilishiment, vêm perpetrando mediante emendas à Constituição, verdadeira violência aos direitos do cidadão e um desrespeito inominável à vontade do legislador constituinte originário, sendo uma delas a de número 41 que alterou o inciso XI do art. 37 da Carta Magna, de sorte que inquestionavelmente subtraiu direitos adquiridos, inerentes à irredutibilidade dos proventos, vencimentos dos servidores públicos e subsídios dos agentes políticos aposentados ou não, e que se encontram protegidos por cláusulas pétreas das quais o legislador constituinte derivado anda a fazer tabula rasa.
Uma leitura singela ao artigo 9º da citada emenda basta a esta conclusão:
"Art. 9º. Aplica-se o disposto no art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias aos vencimentos, remunerações e subsídios dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza".
            Uma boa exegese do tema reclama a transcrição do art. 17 do ADCT, a que remete o art.9º da EC nº 41:
"Art. 17 – Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, nesse caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título".
            Do dispositivo resulta clara a pretensão do legislador derivado de reavivar a eficácia do art. 17 do ADCT, com o deliberado objetivo de amesquinhar a remuneração dos agentes políticos que legitimamente percebem subsídio acima do novo teto constitucional.
            Ocorre que o art. 17 do ADCT, enquanto manifestação do Poder Constituinte originário – incondicional, autônomo e inicial – pode alterar situações constituídas anteriormente à promulgação da Constituição. Porém emenda constitucional, porque decorrente do Poder Constituinte reformador – derivado, condicionado e subordinado – está sujeita a limites materiais, que a impedem de alcançar direitos e garantias individuais do cidadão.
            O método de elaboração legislativa utilizado no art. 9º da EC n 41, que, em vão, procura socorrer-se do art. 17 do ADCT, constitui indisfarçável tentativa de burla à garantia individual do direito adquirido, consagrado no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.
            Em julgado recente (RE n. 298.695-0/SP - 06/08/2003), decidiu o Supremo Tribunal Federal que "a garantia da irredutibilidade de vencimentos é modalidade qualificada de direito adquirido e projeta-se para o futuro, de modo a assegurar o servidor contra a redução de estipêndio licitamente reajustado".
            O Ministro Carlos Mário Velloso, em artigo dedicado ao tema, publicado em Temas de Direito Público, Belo Horizonte, l994, p.448/449 pondera que: "..um direito adquirido por força da Constituição, obra do Poder Constituinte originário, há de ser respeitado pela reforma constitucional, produto do Poder Constituinte instituído ou de 2º grau, vez que esse é limitado, explícita e implicitamente pela Constituição".

Daí porque o Excelso Pretório, no julgamento da ADIN nº 939-DF, concluiu "verbis":
"Uma emenda à Constituição, emanada, portanto, de Constituinte derivado, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional pelo STF, cuja função precípua é a guarda da Constituição (art.l02,I,"a" da CF (...)",cfe RTJ 151/755);
Dentro do contexto, forçoso é admitir-se a existência de direito adquirido contra Emenda Constitucional, pelo limite material constante do art.60,IV da CF/88 referente à cláusula pétrea – direitos e garantias individuais c/c art.5º, XXXVI (a lei não prejudicará o direito adquirido, entendido esse em seu sentido amplo), tendo o STF entendido que os direitos individuais são limites (limites formais, materiais e circunstanciais) à emenda e não se restringem aos do art.5º, podendo, neles, estarem inclusos outros, a exemplo dos direitos tributários (ADIN 939-7-DF,Rel. Min.Sydney Sanches e ADIN 829-DF,Rel. Min.Moreira Alves, já referidas).
            Assim não se pode olvidar, que após o advento da Constituição cidadã de l988, esse assunto não desperta maior trabalho de interpretação na visão do próprio STF, senão vejamos: Quando o Constituinte Originário, de 1º grau, ilimitado, resolveu pôr um final nos super - salários, dos "marajás", dispondo no art. 17 do ADCT da CF/88 ""Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título". o que fez o STF?
            No RE 141788.9-CE, DJU 18.6.93, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, o STF deixou definitivamente esclarecido que as chamadas vantagens pessoais ou individuais estão fora do teto remuneratório. Naquele julgamento assim se pronunciou o conspícuo Ministro:
Ora, mesmo quando o Constituinte Originário, de la. categoria, ilimitado, determinou no art. 17 da ADCT da CF/88 que se respeitasse o teto salarial, aquela mais alta Corte Judicante (STF) decidiu que as VANTAGENS PESSOAIS/INDIVIDUAIS poderiam permanecer fora do teto, em respeito à clausula pétrea do direito adquirido, como aceitar esse mesma "ordem" vinda agora do Constituinte Derivado, de 2a.categoria, limitado?”
Por outro lado, sobre os limites do Poder Constituinte derivado, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 466/DF, em que foi Relator o eminente Ministro CELSO DE MELLO (RTJ 136/26), fez a seguinte advertência:
O Congresso Nacional, no exercício de sua atividade constituinte derivada e no desempenho de sua função reformadora, está juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte originário que, a par de restrições de ordem circunstancial, inibitórias do poder reformador (CF, art. 60, § 1º), identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível e imune à ação revisora da instituição parlamentar. As limitações materiais explicitas, definidas no § 4º do art. 60 da Constituição da República, incidem diretamente sobre o poder de reforma conferido ao Poder Legislativo da União, inibindo-lhe o exercício nos pontos ali discriminados. A irreformabilidade desse núcleo temático, acaso desrespeitada, pode legitimar o controle normativo abstrato, e mesmo a fiscalização jurisdicional concreta, de constitucionalidade”. 
E ainda
Emendas à Constituição – que não são normas constitucionais originárias – podem, assim, incidir, elas próprias, no vício de inconstitucionalidade, configurado pela inobservância de limitações jurídicas superiormente estabelecidas no texto constitucional por deliberação do órgão exercente das funções constituintes primárias ou originárias, como tem reconhecido a doutrina, expressa no magistério de Otto Bachof, “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, págs. 52/54, 1977, Atlântida Editora, Coimbra; Jorge Miranda, “Manual de Direito Constitucional”, tomo II/287-294, item nº 72, 2ª ed., 1988, Coimbra Editora; Maria Helena Diniz, “Norma Constitucional e seus efeitos”, pág. 97, 1989, Saraiva; J. J. Gomes Canotilho, “Direito Constitucional”, págs. 756/758, 4ª ed., 1987, Almedina; José Afonso da Silva, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, págs. 58/60, 5ª ed., 1989, RT, entre outros” (RTJ 136/32).  
Lembra, também, ALEXANDRE DE MORAES (idem, págs. 1.085/86) “que a grande novidade do referido art. 60 está na inclusão, entre as limitações do poder de reforma da Constituição, dos direitos inerentes ao exercício da democracia representativa e dos direitos e garantias individuais, que, por não se encontrarem restritos no rol do art. 5º, resguardam um conjunto mais amplo de direitos constitucionais de caráter individual dispersos no texto da Carta Magna”.
Mas não é só segundo a abalizada cátedra de JOSÉ AFONSO DA SILVA (idem, pág. 628), a garantia atinente à irredutibilidade de vencimentossignifica que nem o padrão, nem os adicionais ou outras vantagens fixas poderão ser reduzidos”.
Manifestando-se a esse respeito, assim deliberou o Plenário do Colendo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 2.075 MC/RJ (D. J. de 27.6.2003, Seção 1, pág. 28):
A garantia constitucional da irredutibilidade do estipêndio funcional traduz conquista jurídico-social outorgada, pela Constituição da República, a todos os servidores públicos (CF, art. 37, XV), em ordem a dispensar-lhes especial proteção de caráter financeiro contra eventuais ações arbitrárias do Estado. Essa qualificada tutela de ordem jurídica impede que o Poder Público adote medidas que importem, especialmente quando implementadas no plano infraconstitucional, em diminuição do valor nominal concernente ao estipêndio devido aos agentes públicos.
A cláusula constitucional da irredutibilidade de vencimentos e proventos – que proíbe a diminuição daquilo que já se tem em função do que prevê o ordenamento positivo (RTJ 104/808) – incide sobre o que o servidor público, a título de estipêndio funcional, já vinha legitimamente percebendo (RTJ 112/768) no momento em que sobrevém, por determinação emanada de órgão estatal competente, nova disciplina legislativa pertinente aos valores pecuniários correspondentes à retribuição legalmente devida”.
Explicitando o alcance desse princípio constitucional, disse o preclaro Relator, proficiente Ministro CELSO DE MELLO, em seu erudito voto:
Esta Corte, pronunciando-se sobre o alcance da cláusula constitucional da irredutibilidade de vencimentos, deixou assentado que a garantia em questão “veda a redução do que se tem” (RTJ 104/108, Rel. Min. MOREIRA ALVES).
O Supremo Tribunal Federal, tendo presente a concreta abrangência desse postulado fundamental, enfatizou que “... a garantia constitucional de irredutibilidade de vencimentos (...) torna intangível o direito que já nasceu e que não pode ser suprimido...” (RTJ 118/200, Rel. Min. CARLOS MADEIRA), pois, afinal, a garantia da irredutibilidade incide sobre aquilo que, a título de vencimentos, o servidor já vinha percebendo (RTJ 112/768, Rel. Min. ALFREDO BUZAID).
Cumpre ter presente, neste ponto, a sempre lembrada decisão desta Suprema Corte, em período no qual a garantia em causa somente dizia respeito aos membros do Poder Judiciário, na qual se assentou, concernentemente ao tema em debate, que “O que a irredutibilidade veda é a diminuição, por lei posterior, dos vencimentos que o juiz, em exercício antes de sua vigência, estivesse recebendo” (RTJ 45/353-355, Rel. Min. EVANDRO LINS).
Esse entendimento – impõe-se enfatizar – tem sido reiterado em diversos pronunciamentos dessa Corte Suprema, nos quais, por mais de uma vez, já se proclamou que a garantia constitucional da irredutibilidade de vencimentos proíbe que o estipêndio funcional seja reduzido ou afetado, por ato do Poder Público, em seu valor nominal (RTJ 105/671-675, Rel. Min. SOARES MUÑOZ)”.
Verifica-se, portanto, consoante o ensinamento do Supremo Tribunal Federal, que a cláusula constitucional da irredutibilidade de vencimentos e proventos, torna imune à redução o “montante global da remuneração”, percebida pelos servidores públicos (SS nº 694/ES, Min. OCTAVIO GALLOTTI, D. J. de 20.9.94), caracterizada como “uma modalidade qualificada de direito adquirido”, que protege, também, as gratificações individuais incorporadas, excluídas, pelo poder constituinte originário, do teto constitucional (art. 37, XI, e art. 39, § 1º, combinados, da CF/88).
A reforma operada na Constituição Federal de 1988, pelo Congresso Nacional, por meio da EC nº 41, de 19.12.2003 (DOU de 31.12.2003), determinou, em linha contrária, que se considere, na fixação do teto dos vencimentos/proventos, as “vantagens pessoais”, inclusive a “parcela recebida em razão de tempo de serviço” (art. 37, XI, com a redação da EC nº 41/2003, e arts. 8º e 9º da mesma emenda constitucional), expressamente ressalvadas pelo poder constituinte originário do limite máximo de remuneração dos servidores públicos (art. 39, § 1º, da CF/88, texto primitiva).
           Diante dos argumentos jurídicos esposados pela mais alta corte de justiça do País, penso ser preciso se entender, entender mesmo, sem paixão ou preconceitos, que ninguém é simplesmente favorável a que se perceba salários, vencimentos, proventos, estipêndios, etc, em valores acima de um teto que, antes de tudo, é moralizador e bom para a Sociedade. O limite máximo salarial é o ideal, mormente em um País como o Brasil, em que a grande massa brasileira de trabalhadores ganha menos de dois salários mínimos.
            Todavia, também é preciso compreender, compreender mesmo, da mesma forma sem paixão e sem preconceito, que não compete ao Poder Judiciário deixar que uma cláusula pétrea, como o direito adquirido, seja eliminada pelo Constituinte Derivado, de 2a. categoria, limitado, que neste momento está atingindo os ganhos salariais dos servidores porque, amanhã, poderá vir também a eliminar a ampla defesa, o contraditório, considerar lícita provas ilícitas ou obtidas ilicitamente mediante tortura ou outros meios que a própria Imprensa termina também por não aceitar e, quem sabe, até chegar ao ponto de abolir os direitos à saúde, à liberdade de imprensa, a liberdade individual e à própria vida. É aí?
            O Poder Judiciário não pode ser comprometido com planos econômicos de nenhum Governo. Não o foi com o de Fernando Collor de Melo. Não o foi com o de Fernando Henrique Cardoso e não deverá sê-lo com o atual nem com os futuros. O seu compromisso - do Poder Judiciário - terá de ser sempre com a lei constitucional e a Constituição de seu País.
A par do cumprimento da Constituição por todos os súditos, e particularmente pelos Parlamentares, pelos juízes e pelo estabilishiment de plantão, é de se lembrar à erudição do famigerado Ministro Celso de Melo que em voto proferido em Ação Direta de Inconstitucionalidade pontificou:
"Uma Constituição escrita não configura mera peça jurídica, nem é simples estrutura de normatividade e nem pode caracterizar um irrelevante acidente histórico na vida dos Povos e nas Nações. Todos os atos estatais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica dos Tribunais, especialmente porque são írritos, nulos e desvestidos de qualquer validade. A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste - enquanto for respeitada - constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos" (ADIN 293-7 - DF, Rel. Min. Celso de Melo, STF, DJU de 16/04/93, pág. 6429).
"Traidor da Constituição é traidor da Pátria "(Ulisses Guimarães).
            O Juiz, portanto, é obrigado a cumprir e fazer cumprir as leis constitucionais e a Constituição. Gostem ou não. Aceitem ou não, porque o traidor da Constituição será mais indigno quando se tratar de um magistrado que ao assumir o cargo mormente por concurso público de provas e títulos, jurou cumpri-la e para tanto lhes é outorgado pela própria Constituição as garantias da vitaliciedade, da irredutibilidade dos subsídios e da inamovibilidade.
Conclui-se, portanto, que na senda da pacífica e torrencial jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, forçoso é admitir, data venia, que, no exercício de competência constituinte derivada, em face da proibição de serem propostas emendas que atentem contra “os direitos e garantias individuais”, não pode o poder reformador, seguir contra aquela limitação material explícita, subtrair da imunidade ao teto remuneratório “gratificações pessoais”, já incorporadas aos estipêndios dos funcionários públicos diante do obstáculo intransponível do art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal.

JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA
Juiz de Direito – Professor Universitário – Especialista em Direito Civil

sexta-feira, 22 de abril de 2011

A DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA COMO INSTRUMENTO DE COMBATE À FRAUDE E AO ABUSO DE DIREITO




Sumário : 1. Introdução. 2. Origem do instituto. 3. Aplicação no Direito norte-americano. 4. Aplicação no Direito brasileiro. 5. Pressupostos fáticos de aplicabilidade do instituto pelo judiciário. 6. Conclusão.







O espirito do comércio produz nos homens um acentuado sentido de justiça exata, oposto de um lado à rapinagem e de outro à negligência dos próprios interesses.” (Monstesquieu).







  1. INTRODUÇÃO

Desde priscas eras que o mundo jurídico, e porque não dizer o mundo dos negócios, vêm se preocupando com o crescente número de fraudes perpetradas por inescrupulosos encobertos sob o manto da incomunicabilidade da personalidade da pessoa jurídica, com a do sócio ou diretor.
Não são raros os casos em que uma pessoa abre uma firma fictícia em nome de interposta pessoa – “laranja”-, ficando por trás da empresa, munido de uma procuração Pública com poderes amplos e ilimitados de gestão, passando então a aplicar os mais variados golpes na praça, de modo que, uma vez executada a empresa, descobre-se que a mesma só existe de direito, mas de fato não passa do que se convencionou chamar de “fantasma”, desprovida de qualquer patrimônio garantidor de suas dívidas, geralmente contraídas pelo espertalhão gestor, mas que na verdade é o seu mentor e proprietário, beneficiário maior das vultuosas quantias desviadas em prol de seu patrimônio, inalcançado quando do acionamento judicial da empresa “fantasma”, por ser defeso, ex-vi do comando normativo do artigo 20 do Códex Civil.
Foi com essa preocupação e, ante à necessidade de se encontrar mecanismos de defesa, que se inseriu no mundo jurídico a teoria da “desconsideração da pessoa jurídica”, também conhecida como “disregard doctrine”, ou ainda, como chamam
os argentinos, “teoria de la penetración”

  1. ORIGEM DO INSTITUTO

A desconsideração da pessoa jurídica é indubitavelmente uma das mais revolucionárias e expressivas tendências experimentadas pelo Direito, no século XX. O mundo jurídico rende homenagens à sistematização do tema, aos estudos desenvolvidos pelo alemão Rolf Serick, em monografia através da qual concorreu pela docência da Universidade de Tubigem, na década de 1950. Todavia, foi dentro do sistema jurídico anglo-americano que exsurgiu as primeiras manifestações que levaram à teoria da “disregard of legal entity”, ou como alguns preferem chamá-la “disregard doctrine”, através da qual, o juiz pode, em casos concretos, desconsiderar a pessoa jurídica em relação à pessoa de quem se oculta sobre ela e que a utiliza fraudulentamente.

  1. APLICAÇÃO NO DIREITO NORTE-AMERICANO

Nos Estados Unidos da América do Norte, a “Disregard of legal entity”, se consolidou, ingressando na legislação daquele povo de forma definida e esquematizada. Concedeu, ela aos juizes norte-americanos, a ferramenta necessária e suficiente para atingir a responsabilidade pessoal de empresários aventureiros, quando viessem a causar prejuizos a outrem em benefício próprio, utilizando-se para tanto de uma pessoa jurídica que lhe pertencia.
O Jurista norte-americano Wormser, no ano de 1912, procurando externar um conceito para o instituto, já professava com muita propriedade que, “quando o conceito de pessoa jurídica (corporate entity) se emprega para defraudar os credores, para subtrair-se a uma obrigação existente, para desviar a aplicação da lei, para constitui ou conservar monopólio ou para proteger velhacos ou delinqüentes, os tribunais poderão prescindir da personalidade jurídica e considerar que a sociedade é um conjunto de homens que participam ativamente de tais atos e farão justiça entre pessoas reais”. Hodiernamente, os tribunais norte-americanos, ampliaram o conceito, aplicando o instituto quando a consideração da pessoa jurídica levar a um desfecho injusto. Partindo, assim, do conceito de fraude, conforme a concepção de Wormser, alargou-o, para alcançar da mesma forma as situações em que porventura ocorrer “abuso de direito”.

  1. A APLICAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

Na doutrina pátria, coube ao comercialista Rubens Requião, 1 pioneiramente abordar o tema entre nós, em conferência realizada na Faculdade de Direito da Universidade do Paraná, publicada, posteriormente na RT 410/12.
Merece também ser referenciados os trabalhos doutrinários publicados por Lamartine Corrêa de Oliveira2 , e por Fábio Ulhoa Coelho3.
O instituto em comento foi recepcionado pela legislação especifica, em diferentes áreas. A antiga Lei das Sociedades Anônimas (DL 2.627 de 1940) individualiza a responsabilidade dos seus administradores quando agem com dolo, culpa ou com violação da lei ou dos estatutos (art. 121). Por outro lado, o comando do artigo 158 da atual Lei das Sociedades Anônimas (Lei Nº 6.404 de 15.12.76), igualmente estabelece que o administrador responde civilmente pelos prejuizos que causar na gestão da empresa, quando proceder com culpa ou dolo, ou com violação da lei ou estatuto.
No Código Tributário Nacional, (Lei Nº 5.172/66), encontramos no comando do artigo 134, VII, que “os sócios em casos de liquidação da sociedade de pessoas, respondem solidariamente pelos débitos fiscais da empresa”. Igualmente, os gerentes, diretores ou representantes das pessoas jurídicas de direito privado são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias, resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto (cf. art. 135, II).
Esxurge, forte ainda, no artigo 18 da Lei do Abuso do Poder Econômico (Lei Nº 8.884/94, sendo também recepcionada pelo Código de Defesa do Consumidor ao comandar em seu artigo 28 “verbis”:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”

E também no Código Civil em seu artigo 50 (art. 20 do CC/16), ao comandar:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público quando couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

A jurisprudência nacional, inobstante ainda ser escassa sobre o tema, mas, forçoso é reconhecer-se, que, paulatinamente vem se firmando na recepção do instituto. Tanto é assim, que o Supremo Tribunal Federal, ao dirimir querela sobre o poder da “holding” em relação à alienação de ações da subsidiária, invocou a doutrina americana da desconsideração da pessoa jurídica (cf. RE 88.591, RTJ 93/320).
Também, julgando o RHC 54.411, reconheceu a responsabilidade do diretor de fato que se oculta atrás da nomeação de “homem-de-palha” para o cargo de diretor, o que, evidentemente, nada tem a ver com a “disregard doctrine”, mas que serve para demonstrar que mesmo no Brasil a disposição prevista no artigo 50 do Código Civil (art. 20, caput, do Códex Civil de 1916), não é absoluta, principalmente quando ocorrer fraude, tanto que o Pretório Excelso, nesse caso, transferiu a responsabilidade para o autor da fraude (RTJ 78/752).4
Indubitavelmente, na hipótese, o STF, aplicou ao caso a teoria norte-americana da “dummy corporation”.

  1. PESSUPOSTOS DE APLICABILIDADE DA DOUTRINA PELO JUDICIÁRIO.

“A disregard doctrine”, como já se disse linhas supra, surgiu da necessidade de se encontrar mecanismos de proteção, contra o mau uso da sociedade mercantil.
A autonomia patrimonial decorrente do comando do artigo 20 do Código Civil, ou seja, a dualidade da personalidade jurídica da sociedade mercantil e de seu sócio tem sido explorada para a manipulação de fraudes várias ou abuso de direito. Quando tal acontece, outro caminho não há que não seja a desconsideração da pessoa jurídica para se alcançar o fraudador ou abusador do direito.
Os casos de aplicação do instituto são ainda ampliados, na hipótese de falências, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da sociedade mercantil, tudo provocado por má administração. É bem verdade, que a legislação pertinente ao instituto, mas precisamente o comando normativo do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, refere-se apenas à situação em que a vítima seja um consumidor, ou quando se cuidar de crime contra a ordem econômica. Todavia, o aplicador do direito, pelo princípio da analogia e, obedecido o Due Process of law, pode estender a desconsideração da personalidade jurídica para outras áreas similares, e até mesmo em situações falimentares.
De bom alvitre lembrar, que a aplicação da “disregard doctrine”, não é regra absoluta, pois encontra limites quando do exercício da atividade jurisdicional. É o que leciona Fábio Ulhoa Coelho, ao discorrer que, “somente quando a pessoa jurídica for utilizada para a realização de uma fraude ou abuso de direito é que o juiz está autorizado a ignorá-la. O simples prejuízo de terceiros em razão da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais nunca será por si só, fundamento para a desconsideração. Sem elemento subjetivo, intencional, destinado a ocultar a ilicitude atrás da pessoa jurídica, não há como superar a autonomia patrimonial que a caracterize. Se inexiste fraude ou abuso de direito, a personalização da sociedade, associação ou fundação deve ser amplamente prestigiada.5
Não é diferente o pensamento de Rubens Requião, para quem, “diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou abuso de direito, ou se deve desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos e abusivos.6
Outro pressuposto a ser observado na aplicação do instituto, é o fato de que no caso concreto não há supressão da sociedade, nem tão pouco se considera ela nula. Apenas, em casos especiais, declara-se ineficaz determinado ato, ou se regula a questão de modo diverso das regras habituais, dando mais realce à pessoa do sócio ou gestor do que à sociedade.

  1. CONCLUSÃO

De acordo com os ensinamentos doutrinários, a legislação pátria e o acervo jurisprudencial, aplicáveis ao tema em comento podemos concluir que:
  1. A “disregard of legal entity” é de grande alcance e eficiência para impedir o abuso e as fraudes lato sensu;
  2. O instituto deve ser aplicado apenas nos casos concretos;
  3. Só deve ser invocada quando os sócios e/ou gestores utilizarem a sociedade com má-fé, comprovando-se a fraude ou abuso de direito ou ainda afronta à lei;
  4. A responsabilidade do sócio na aplicação do instituto é ilimitada.

11 REQUIÃO, Rubens. – Aspectos Modernos de Direito Comercial – Saraiva -, São Paulo, 1977.
2 OLIVEIRA, Lamartine Corrêa. – A dupla face da pessoa jurídica – Saraiva -, São Paulo.
3 COELHO, Fábio Ulhoa. – A desconsideração da Personalidade Jurídica – Revista dos Tribunais -, Forense, São Paulo, 1989.
4 LIMBORÇO, Lauro – “DISREGARD OF LEGAL ENTITY” – Artigo publicado na RT – 579 , p. 27.

5 COELHO, Fábio Ulhoa – A desconsideração da Personalidade Jurídica – Forense – São Paulo, 1989.
6 REQUIÃO, Rubens – Aspectos Modernos de Direito Comercial, p. 70 – Saraiva -, São Paulo, 1977.


sexta-feira, 15 de abril de 2011

INTERPRETAÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NO SISTEMA CIVIL BRASILEIRO

Um dos temas jurídicos tratados no atual Código Civil e de grande implicação no cotidiano dos jurisdicionados é inerente ao chamado abuso de direito. O art. 187 do Diploma Substantivo Civil comanda que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes”.  
A redação do dispositivo confunde inquestionavelmente abuso de direito com ato ilícito, dando àquele tratamento de ilícito, quando, de acordo com a melhor e mais moderna doutrina, são institutos totalmente distintos. Na verdade conforme pondera Heloisa Carpena (Abuso de direito nos contratos de consumo. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 58), o legislador misturou os dois institutos, analisando-os apenas pelos efeitos, o que pode tornar insuficiente a sanção atribuída aos casos de abuso de direito.
O abuso de direito ocorre, quando uma pessoa, ao exercer direito legítimo excede os limites impostos por seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Uma pessoa tem o direito de construir em seu terreno, dentro dos limites legais. Acontece que, mesmo respeitando esses limites, certo indivíduo constrói em seu imóvel, com o objetivo manifesto, de dificultar o trânsito do vizinho. Estaria assim cometendo abuso de direito. O ato é formalmente correto, porquanto a conduta do agente se deu dentro dos limites formais de seu direito, está assim preenchida a estrutura normativa do direito, entretanto foram ultrapassados os limites da boa-fé; não foi cumprido o valor normativo que é o fundamento de validade do direito.
No ato ilícito, o agente pratica ato contrário ao Direito, que, nem na aparência, se pode confundir com o exercício legítimo de direito subjetivo. Se o cidadão mata alguém, ou se por culpa bate o carro, não está exercendo nenhum direito fora dos limites; está agindo contra o Direito, pura e simplesmente. Se tanto no abuso de direito, quanto no ato ilícito, o agente pratica ato antijurídico, no abuso de direito, há o exercício legítimo de um direito subjetivo, que ultrapassa certos limites, enquanto no ato ilícito, tal não ocorre. Em outra dicção, o ato ilícito nada tem de exercício legítimo de direito.
Em alguns casos, o ato ilícito pode derivar do exercício de um direito, que ultrapassa seus limites formais. Tome-se como exemplo o fato de uma pessoa dirigir em alta velocidade e acima do permitido para o local. Estará praticando ilícito administrativo, posto que ao exercer o seu direito de dirigir, violou o limite formal de velocidade. Não se trata de abuso de direito, uma vez que o ato é formalmente antijurídico. Ninguém tem o direito legítimo de dirigir acima da velocidade razoavelmente permitida. Mas, ao contrário, se uma pessoa, propositadamente, dirige em velocidade extremamente baixa, com o objetivo de travar o trânsito, estará cometendo abuso de direito. É que, na aparência o ato é perfeito, legítimo. Formalmente, essa pessoa não está cometendo nenhuma antijuridicidade. Ocorre que, do ponto de vista valorativo, está ultrapassando os limites impostos pela boa-fé.
A distinção entre os dois institutos em estudo é de importância impar para os operadores do direito, porquanto as conseqüências do ato abusivo podem ser diferentes das do ato ilícito.
A prática do ato ilícito, em regra gera o dever de indenizar, salvo as excludentes de caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima. Já o abuso de direito, pode gerar a obrigação de indenizar, como pode derivar para outra espécie de sanção. Tudo dependerá do caso concreto.
Nos exemplos acima citados, notadamente o último, as conseqüências do abuso de direito ao dirigir em baixa velocidade serão idênticas à de um ato ilícito: o culpado deverá indenizar os danos eventualmente causados a terceiros. Mas se tomarmos outro exemplo, veremos que não será a indenização a conseqüência. Imagine-se um contrato em que uma pessoa se obriga a realizar para outra, serviços de pintura ou de marcenaria, incumbindo ao credor dos serviços a escolha. Este, de má-fé, sabendo que será muito mais dificultoso para o devedor realizar os serviços de pintura, escolhe estes últimos, com a nítida intenção de prejudicar o devedor, onerando-o excessivamente. Nesse caso, o credor está agindo dentro dos limites formais de seu direito de escolher. Todavia, foram, desenganadamente violados os limites da boa-fé. Diante disso, poderá o devedor, provando a má-fé do credor, ou seja, provando o abuso de direito, exigir judicialmente que o credor aceite os serviços de pintura, ou libere-o da obrigação. No caso, não há que se falar em indenização, uma vez que não houve dano. Vê-se, pois, que, nesta hipótese de abuso de direito, as conseqüências foram diferentes das de um ato ilícito.
Diante do exposto, penso, cumprir aos operadores do direito, e mais precisamente aos seus aplicadores – juízes – não confundir os dois institutos, como fez o legislador civil de 2002.

JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA
Juiz de Direito – Especialista em Direito Civil – Prof.º. do UNIPÊ.



A INCONSTITUCIONALIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 1° DA LEI PENAL TRIBUTÁRIA BRASILEIRA.

No Estado Democrático de Direito não é admissível que o legislador incrimine qualquer comportamento, a seu alvedrio, descrevendo-o em lei, sob o pretexto de que assim ter-se-á atendido o requisito básico do Direito Penal, consubstanciado na fórmula nullum crimem nulla poena sine lege, denominado tecnicamente de princípio da reserva legal, recepcionado nos comandos dos arts. 5º, XXXIX, da CF e 1º do CP. De fato não basta a previsão legal de uma conduta acoplada a uma pena para torná-la criminosa, porque o Direito é um todo harmônico, encimada pela Constituição, de maneira que a norma penal precisa atender aos princípios firmados na Lei Maior, não sendo, portanto possível que o legislador apene um comportamento que ela permita. O princípio em estudo surgiu historicamente sob o impulso do constitucionalismo, que avassalou o Ocidente na esteira da Revolução Francesa. Anteriormente, o absolutismo real não conhecia essa limitação, sendo lícito aos monarcas de então a prisão de qualquer súdito que não pertencesse a nobreza por simples determinação denominada na França lettre de cachet, independentemente de prévia lei incriminadora ou de acusação formal.
Na modernidade, e isso é o óbvio, se fosse permitido ao legislador incriminar qualquer conduta imaginável, desde que sob a veste da lei, não se pode negar que se estaria regredindo à época pré – revolucionária, apenas com o diferencial de que o legislador necessitaria de uma lei, enquanto ao monarca absolutista das eras passadas suficiente seria expedir uma ordem individual. Em verdade, no Estado de Direito, o requisito basilar de qualquer lei é a conformidade da norma com a Constituição, qualquer que seja a matéria tratada.
No âmbito das leis penais tributárias, adverte BLUMENSTEIN (in. Sistema di diritto delle imposte, Milano, Giuffrè, 1954, p. 287), que “em amplos círculos a consciência popular ainda se recusa a reconhecer as infrações às normas do Direito dos impostos como verdadeiros e próprios ilícitos penais, nelas vendo antes uma forma de defesa da liberdade natural contra as regras coativas do Fisco”.
A lição do conspícuo tributarista, segundo JUARY C. SILVA (Elementos de Direito Penal Tributário, Saraiva, 1998), parece encontrar ressonância indiscutível no Brasil, tanto assim que ao exame da constitucionalidade dos dispositivos da Lei 8.237/90, a certeza lógica de que alguns deles estão flagrantemente em descompasso da Magna Carta.
Adverte o escolialista que as figuras penais do art. 1º dessa lei não se integram apenas mediante as condutas previstas nos incisos I a V, senão através da ação geral referida no caput mais a conduta particular contida nos incisos. De fato o núcleo do tipo do inciso V do art. 1º da Lei 8.137/90, que prevê a pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa, é descrito como a conduta de “negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornece-la em desacordo com a legislação”. Já o parágrafo único do mesmo dispositivo legal determina que “a falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo máximo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V”.
A exegese do dispositivo nos leva à convicção de que o legislador tributarista não foi feliz em sua intenção porquanto a fatispécie do inciso V não se refere a exigência de autoridade, resumindo-se à negativa ou omissão de fornecimento de nota fiscal ou equivalente, ou fornecimento desta em desacordo com a legislação; logo, a exigência decorre da própria lei, dispensando qualquer ato de autoridade.
O preceito torna-se ainda mais absurdo quando autoriza a que o prazo de cumprimento da exigência seja reduzido pela autoridade, dos dez dias previstos para “horas”, indeterminadamente, “em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou dificuldade quanto ao atendimento da exigência”, equiparando essa conduta omissiva à infração prevista no inciso V do artigo, o que levou JUARY C. SILVA (1998, p. 121) a afirmar que, “em substância esse parágrafo não se filia dogmaticamente ao caput, como de boa técnica legislativa, e, mirabile dictu, erige mera omissão a figura típica penal, a critério do Fisco, algo que, tanto quanto se saiba nenhum regime autocrático jamais fez no mundo ocidental”.
Dentro do contexto, não se há de negar que o dispositivo em comento fere escandalosamente o princípio da reserva legal, ao deixar a colmatação da fatispécie penal ao arbítrio de autoridade administrativa, o que implica dizer que faz tabula rasa do princípio iluminístico consagrado na fórmula nullum crimem sine lege, como é do Direito Positivo brasileiro. Esqueceu-se o legislador de que em todas as figuras dos incisos a completude da fatispécie inicia-se como a conduta nele prevista de “suprimir ou reduzir tributo”. Sem ela, os comportamentos descritos nos incisos tornam-se penalmente irrelevantes.
Matéria penal, como é de conhecimento basilar, é de Direito estrito, de modo que a incriminação deve ser precisa caracterizando nitidamente a conduta visada, sem necessidade de recurso a ato específico de autoridade e tampouco sendo admissível a variação da fatispécie, ao talante da autoridade. Assentes tais pressupostos, que ao menos aparentemente ninguém contesta, forçoso é concluir-se que o parágrafo único do art. 1º da Lei 8.137/90, padece de manifesta inconstitucionalidade, por não se amoldar ao requisito da legalidade, que se diga, não se confunde com a simples redação sob a forma da lei, exigindo, outrossim, conteúdo pertinente aos comandos incriminatórios e compatibilizados com princípios insertos no texto constitucional.

JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA
Juiz de Direito – Especialista em D. Civil – Prof.º do UNIPÊ

quinta-feira, 14 de abril de 2011

ALCANCE DA COISA JULGADA E EFEITOS DA SENTENÇA EM RELAÇÃO ÀS PARTES E AOS TERCEIROS.

A problemática dos efeitos da sentença e do alcance da coisa julgada é indiscutivelmente um dos temas mais polêmicos e, sem dúvida, um dos mais importantes para a ciência do processo civil, porquanto há depender de como se recepciona os institutos na realidade fática dos jurisdicionados, decorre inquestionavelmente a segurança jurídica, não se permitindo seja o ato decisório desprezado pelo mesmo ou por outro juízo.
Compreendido que a sentença é o pronunciamento judicial que implica uma das situações previstas nos artigos 267 e 269, CPC, pondo-se se fim ao processo na instância sem julgamento do mérito (art. 267); ou resolvendo-se o mérito acolhendo ou rejeitando no todo ou em parte o pedido autoral (art. 269); faz-se mister que em ato seguinte seja verificado qual o principal efeito por ela gerado, na hipótese de não ser atacada por qualquer recurso judicial (ou, tendo sido, com a rejeição ou o inacolhimento de seus argumentos).
O artigo 467 do Digesto Processual Civil define a coisa julgada material como “a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”. Com tal definição, pretendeu o legislador indicar que a imutabilidade protege a sentença, tornando-a indiscutível nos processos futuros, somente poderá ter lugar, depois de formar-se sobre ela a coisa julgada formal; ou seja, a coisa julgada material pressupõe a coisa julgada formal. Por outras palavras, para que haja imutabilidade da sentença no futuro, primeiro é necessário conseguir-se sua indiscutibilidade na própria relação jurídica de onde ela provém.
Complementa a noção de coisa julgada o artigo 468 do Código ao comandar que, “a sentença que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas”. Esta força de lei é que define o que seja a coisa julgada material.
A interpretação teleológica do dispositivo em comento nos deixa à certeza de que à força da sentença transitada em julgada irradia-se em uma eficácia que atinge apenas as pessoas que foram partes no processo (art. 472 do CPC), não podendo os efeitos da sentença beneficiar ou prejudicar terceiros que não tenham de qualquer forma tomado assento na ação judicial.
Isto ocorrendo dar-se ao terceiro a prerrogativa de se opor ao ato judicial que lhe impõe indevida constrição judicial através do instrumento de embargos de terceiro (art. 1.046 do CPC) ou mesmo da ação rescisória ou anulatória (art. 485, 487, inciso II, e 486 do CPC), consoante a natureza jurídica da sentença, sem falar da possibilidade de ser interposto recurso de terceiro, conforme faculta o art. 499 da Lei de Ritos.
De ressaltar que na hipótese de o terceiro ser prejudicado pelo pronunciamento judicial proferido em processo do qual não foi citado, nem muito menos participou, não se exige a obrigatória interposição de recurso cabível, podendo desprezá-lo, partindo para a impetração de mandado de segurança, uma vez caracterizada a ilegalidade, o direito líquido e certo do impetrante e o exercício do direito de ação dentro do prazo decadencial a que alude a lei de regência (Lei nº 1.533/51).
Problema interessante e que surge no dia a dia forense, ocorre quando alguém que não foi parte no processo cognitivo vem a ser atingido em ato de execução de sentença que se afirma já transitada em julgado, não cabendo mais recurso ou mandado de segurança, interpõe objeção de pré – executividade, visando mortificar a sentença e por via de conseqüência à própria execução.
Duas questões emergem, de plano, para o deslinde da lide: a) a primeira, no tocante ao cabimento e prazo da exceção de pré – executividade em si, a despeito de não intentada ação rescisória e de haver suposto transito em julgado da decisão que se pretende declarar nula; b) a segunda, no que concerne a possibilidade de desconstituir sentença de mérito mediante ação diversa da rescisória.
Quanto às referidas questões, dúvida não há de que a tese da "querela nullitatis" e da "actio in integram restitutio contra rem iudicatam" persistem vigentes no Direito Brasileiro. Já dizia PONTES DE MIRANDA a respeito da aparente imutabilidade da coisa julgada e dos remédios processuais para desconstituí-la o seguinte:
"Levou-se muito longe a noção de res iudicata, chegando-se ao absurdo de querê-la capaz de criar uma outra realidade, fazer de albo nigrum e mudar falsum in verum. No entanto, a coisa julgada atende à necessidade de certa estabilidade, de ordem, que evite o moto-contínuo das demandas com a mesma causa."
(........)
"Também nula ipso iure é a (sentença) ferida de morte por alguma impossibilidade: cognoscitiva (sentença incompreensível, ilegível, indeterminável), lógica (sentença invencivelmente contraditória), moral (sentença incompatível com a execução ou a eficácia, como a que ordenasse a escravidão ou convertesse dívida civil em prisão, coisa inconfundível com a detenção civil nos casos especiais da legislação), jurídica (sentença que cria direitos reais além daqueles que o direito permite, como, em Direito civil brasileiro, o fideicomisso do 3º grau).
3. Os meios para se evitar qualquer investida por parte de quem tenha em mão sentença inexistente ou nula ipso iure são os seguintes:
I. Autor, reconvinte, réu ou reconvindo ou qualquer pessoa que litigou subjetivamente à relação jurídica processual, pode volver a juízo, exercer o seu direito público subjetivo, com os mesmos pressupostos de pessoa, objeto e causa, sem que se lhe possa opor, com proveito, a res iudicata: as sentenças inexistentes e as nulas ipso iure é que não produzem coisa julgada.(...........)
II. Opor-se a qualquer ato de execução, por embargos do executado ou por simples petição: porque, ainda que impossível a prestação, há o ingresso à execução: a sentença de prestação impossível não dá, nem tira; mas, como aparência, vai até onde se lhe declare (note-se bem: declare) a impossibilidade cognoscitiva, lógica, moral ou jurídica.
III. Usando-se o remédio rescisório, a corte julgadora ou o juiz singular (se for o caso, segundo a respectiva legislação processual), na preliminar de conhecimento ou, se juntos preliminar e mérito, no julgamento de iudicium rescindens, dirá que o autor não tem a ação rescisória, que tende à anulação das sentenças, mas a sentença que se pretendia rescindir é inexistente ou nula ipso iure."
Eduardo Juan Couture escreveu sobre a admissibilidade e meios da revisão judicial das sentenças cobertas pela coisa julgada, particularmente em relação a ordenamentos jurídicos, como o do Uruguai, àquele tempo cuja lei não consagrava de modo expresso essa possibilidade. Preocupavam o Príncipe dos processualistas latino-americanos as repercussões que a fraude pudesse projetar sobre a situação jurídica das pessoas (partes ou terceiros), ainda mais quando os resultados da conduta fraudulenta estivessem reforçados pela autoridade da coisa julgada. Disse, a propósito desse elegante tema, que “a consagração da fraude é o desprestígio máximo e a negação do direito, fonte incessante de descontentamento do povo e burla à lei”. Maneja o sugestivo conceito de coisa julgada delinqüente e diz que, “se fecharmos os caminhos para a desconstituição das sentenças passadas em julgado, acabaremos por outorgar uma carta de cidadania e legitimidade à fraude processual e às formas delituosas do processo”. E disse também, de modo enfático: “chegará um dia em que as forças vitais que o rodeiam [rodeiam o jurista] exigirão dele um ato de coragem capaz de pôr à prova suas meditações”.
Da lição dos mestres citados, pois, a certeza de que na visão dos fatos trazidos à colação, quando a parte não foi citada ou não participou do processo cognitivo a sentença nela prolatada é nula pleno iures, é inexistente e, portanto nula é a execução à falta de título executivo, podendo ser argüida a nulidade mediante a objeção de pré – executividade.
É pacífico o entendimento de que a exceção de pré – executividade ou como alguns chamam objeção de pré – executividade, é criação doutrinária - jurisprudencial, que tem por finalidade a declaração da imprestabilidade do título que ampara a execução, sem a necessidade de oferecimento de embargos do devedor, ante a manifesta ausência dos requisitos que lhe emprestam força executiva – liquidez, exigibilidade e certeza – ou de nulidade evidente e flagrante, cujo reconhecimento independa de dilação probatória que não a documental.
Para o manuseio desse novel instituto de defesa do suposto devedor, não há prazo preclusivo. Em qualquer tempo ou grau de jurisdição é possível o manejo da exceção, posto que as questões de ordem pública, como os pressupostos processuais e as condições da ação, podem ser opostas a qualquer momento no processo, a teor dos arts. 267, § 3º e 303, III, ambos do CPC e art. 193 do Código Civil.
Sobre o assunto, veja-se o que já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 147.769 – SP, em voto do Sr. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL. ANULAÇÃO DE AÇÃO DEMOLITÓRIA POR FALTA DE CITAÇÃO DOS LITISCONSORTES NECESSÁRIOS. NÃO FORMAÇÃO DA RELAÇÃO PROCESSUAL VÁLIDA. POSSIBILIDADE DE ANULAÇÃO. NULIDADE PLENO IURE. INTERESSE. RECURSO PROVIDO.
I – Os condôminos do imóvel têm manifesto interesse na ação que pretende a demolição do bem, principalmente se a sentença nessa ação fixa a obrigação de destruir o imóvel do qual todos detêm a propriedade.
II – A nulidade pleno iure deve ser apreciada pelo órgão julgador mesmo de ofício, não se sujeitando a coisa julgada, como ocorre na ausência de citação, salvo eventual suprimento, comunicando-se os atos subseqüentes.
III – A citação como ato essencial ao devido processo legal, à garantia e segurança do processo como instrumento de jurisdição, deve observar os requisitos legais, pena de nulidade quando não suprido o vício, o qual deve ser apreciado em qualquer época ou via.
Em seu lapidar voto cujo trecho peço vênia à transcrição, ao se reportar ao ato nulo pleno iure, o Sr. Ministro relator assim se expressou:
Como atos nulos pleno iure, vamos descortinar especialmente os praticados em causas nas quais não se formou a relação processual, a exemplo do que ocorre em feitos desprovidos de citação válida, estando ausente o réu, ou quando não citados todos os litisconsortes necessários ...
A distinção dos atos nulos pleno iure com os absolutamente nulos reside no fato de que nestes há o processo, enquanto naqueles não se forma a relação processual.
Na nulidade processual, ipse iure, o vício é mais grave porque atinge a própria relação processual, que sequer se forma. O vício nunca será sepultado pela preclusão, dispensando-se até mesmo a via da ação rescisória. Assim, não citado, validamente, o réu, ou o litisconsorte necessário (também réu), salvo na hipótese de comparecimento espontâneo, suprindo-se o vício, não haverá processo; logo, não haverá relação processual em relação a eles, nem a sentença (que é ato processual). Não havendo sentença válida, não haverá coisa julgada. Logo, o vício não convalesce sequer pelo fenômeno da rés judicata”.
Vê-se, pois, que se o jurisdicionado não foi citado no processo de conhecimento que gerou a sentença executada, ou não integrou a relação processual, por via de conseqüência exsurge forte a nulidade processual ipse iure, de sorte que inexiste título (sentença) a ser executado, e, portanto, nula a execução a teor do artigo 618 do Código de Processo Civil, sendo obrigação de o órgão julgador reconhecer a nulidade de ofício em qualquer fase do processo ou grau de jurisdição, por se cuidar de matéria de ordem pública, impostergável, portanto, o seu reconhecimento.
Todavia se o órgão julgador não reconhecer de ofício a nulidade, a parte prejudicada terá a seu dispor a objeção de pré-executividade, para fins de obter a tutela jurisdicional declarando-se a nulidade da sentença e por via de supedâneo da própria execução.
A propósito no leading case no Resp 100.998-SP (DJ 21/6/99) em que foi relator o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, o Superior Tribunal de Justiça, decidiu em acórdão assim ementado:
Processual civil. Execução por título judicial. Argüição de nulidade da citação na fase cognitiva, pela autora – exeqüente. Possibilidade. Nulidade pleno iure. Interesse. Recurso provido.
I A nulidade pleno iure deve ser apreciada pelo órgão julgador mesmo de ofício, não se sujeitando a coisa julgada, como é o caso do defeito de citação, salvo eventual suprimento, comunicando-se aos autos subseqüentes.
II – A citação, como ato essencial ao devido processo legal, à garantia e segurança do processo como instrumento de jurisdição, deve observar os requisitos legais, pena de nulidade quando não suprido o vício, o qual deve ser apreciado mesmo no curso da execução da sentença.
Igualmente no RMS nº 1.986 – RJ (DJ 5.4.93), em que foi relator o Ministro Barros Monteiro assim ementado:
Mandado de segurança contra ato judicial. Sentença proferida em processo nulo pleno iure por falta de citação do réu.
Nulo de pleno direito é o processo que se fizer sem a citação da parte. Conseqüentemente, inexistindo sentença válida, não há que se falar em coisa julgada. Cabimento do mandado de segurança por ofensa a direito liquido e certo do impetrante, presentes ainda os requisitos do “fumus boni iuris” e do periculum in mora. Recurso ordinário provido”.
Destarte, e ante os ensinamentos abalizados dos mestres citados, bem assim do entendimento pretoriano esposado, chega-se as seguintes conclusões:
  1. O que a coisa julgada impede é a propositura de uma ação idêntica à demanda encerrada e imunizada pelos efeitos da sentença judicial não impugnada (ou, tendo sido, com a rejeição do recurso correspondente), ou seja, como afirma Misael Montenegro Filho, “apresente as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. Havendo variação dos elementos, não se há de falar em fenômeno da coisa julgada” (in. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I, p. 597. São Paulo: ATLAS, 2005).
  2. A coisa julgada atinge as partes do processo (art. 472 do CPC), não podendo os efeitos da sentença beneficiar ou prejudicar terceiros que não tenham integrado a relação processual cognitiva.
  3. Se o terceiro que não foi citado ou não tomou assento na ação judicial vier a ser prejudicado pela sentença, poderá opor-se ao ato judicial que lhe impor constrição de bens através de embargos de terceiros (art. 1.046 do CPC),ou mesmo ação rescisória ou anulatória (art. 487, II e 486)conforme a natureza jurídica da sentença (condenatória ou homologatória, sem falar da possibilidade da possibilidade de ser interposto recurso pelo terceiro, consoante a faculdade prevista no art. 499 do CPC.
  4. Na hipótese de o terceiro não integrante da ação cognitiva ser prejudicado pelo pronunciamento judicial, não se exige a obrigação de interposição de recurso cabível, podendo despreza-lo, partindo para impetração de mandado de segurança, uma vez caracterizada a ilegalidade, assente o direito líquido e certo do impetrante e o exercício do direito de ação dentro do prazo decadencial a que alude a lei de regência (Lei nº 1.533/51).
  5. Se ultrapassado o prazo decadencial de que cuida o art. 18 da lei mandamental, e estando o feito em fase de execução de sentença, poderá ainda ser utilizado pelo terceiro prejudicado, o instituto da objeção de pré-executividade, vez que inexiste título contra quem não participou do processo cognitivo, sendo a execução nula de pleno direito a teor do art. 618 do CPC.

JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA