sexta-feira, 22 de abril de 2011

A DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA COMO INSTRUMENTO DE COMBATE À FRAUDE E AO ABUSO DE DIREITO




Sumário : 1. Introdução. 2. Origem do instituto. 3. Aplicação no Direito norte-americano. 4. Aplicação no Direito brasileiro. 5. Pressupostos fáticos de aplicabilidade do instituto pelo judiciário. 6. Conclusão.







O espirito do comércio produz nos homens um acentuado sentido de justiça exata, oposto de um lado à rapinagem e de outro à negligência dos próprios interesses.” (Monstesquieu).







  1. INTRODUÇÃO

Desde priscas eras que o mundo jurídico, e porque não dizer o mundo dos negócios, vêm se preocupando com o crescente número de fraudes perpetradas por inescrupulosos encobertos sob o manto da incomunicabilidade da personalidade da pessoa jurídica, com a do sócio ou diretor.
Não são raros os casos em que uma pessoa abre uma firma fictícia em nome de interposta pessoa – “laranja”-, ficando por trás da empresa, munido de uma procuração Pública com poderes amplos e ilimitados de gestão, passando então a aplicar os mais variados golpes na praça, de modo que, uma vez executada a empresa, descobre-se que a mesma só existe de direito, mas de fato não passa do que se convencionou chamar de “fantasma”, desprovida de qualquer patrimônio garantidor de suas dívidas, geralmente contraídas pelo espertalhão gestor, mas que na verdade é o seu mentor e proprietário, beneficiário maior das vultuosas quantias desviadas em prol de seu patrimônio, inalcançado quando do acionamento judicial da empresa “fantasma”, por ser defeso, ex-vi do comando normativo do artigo 20 do Códex Civil.
Foi com essa preocupação e, ante à necessidade de se encontrar mecanismos de defesa, que se inseriu no mundo jurídico a teoria da “desconsideração da pessoa jurídica”, também conhecida como “disregard doctrine”, ou ainda, como chamam
os argentinos, “teoria de la penetración”

  1. ORIGEM DO INSTITUTO

A desconsideração da pessoa jurídica é indubitavelmente uma das mais revolucionárias e expressivas tendências experimentadas pelo Direito, no século XX. O mundo jurídico rende homenagens à sistematização do tema, aos estudos desenvolvidos pelo alemão Rolf Serick, em monografia através da qual concorreu pela docência da Universidade de Tubigem, na década de 1950. Todavia, foi dentro do sistema jurídico anglo-americano que exsurgiu as primeiras manifestações que levaram à teoria da “disregard of legal entity”, ou como alguns preferem chamá-la “disregard doctrine”, através da qual, o juiz pode, em casos concretos, desconsiderar a pessoa jurídica em relação à pessoa de quem se oculta sobre ela e que a utiliza fraudulentamente.

  1. APLICAÇÃO NO DIREITO NORTE-AMERICANO

Nos Estados Unidos da América do Norte, a “Disregard of legal entity”, se consolidou, ingressando na legislação daquele povo de forma definida e esquematizada. Concedeu, ela aos juizes norte-americanos, a ferramenta necessária e suficiente para atingir a responsabilidade pessoal de empresários aventureiros, quando viessem a causar prejuizos a outrem em benefício próprio, utilizando-se para tanto de uma pessoa jurídica que lhe pertencia.
O Jurista norte-americano Wormser, no ano de 1912, procurando externar um conceito para o instituto, já professava com muita propriedade que, “quando o conceito de pessoa jurídica (corporate entity) se emprega para defraudar os credores, para subtrair-se a uma obrigação existente, para desviar a aplicação da lei, para constitui ou conservar monopólio ou para proteger velhacos ou delinqüentes, os tribunais poderão prescindir da personalidade jurídica e considerar que a sociedade é um conjunto de homens que participam ativamente de tais atos e farão justiça entre pessoas reais”. Hodiernamente, os tribunais norte-americanos, ampliaram o conceito, aplicando o instituto quando a consideração da pessoa jurídica levar a um desfecho injusto. Partindo, assim, do conceito de fraude, conforme a concepção de Wormser, alargou-o, para alcançar da mesma forma as situações em que porventura ocorrer “abuso de direito”.

  1. A APLICAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

Na doutrina pátria, coube ao comercialista Rubens Requião, 1 pioneiramente abordar o tema entre nós, em conferência realizada na Faculdade de Direito da Universidade do Paraná, publicada, posteriormente na RT 410/12.
Merece também ser referenciados os trabalhos doutrinários publicados por Lamartine Corrêa de Oliveira2 , e por Fábio Ulhoa Coelho3.
O instituto em comento foi recepcionado pela legislação especifica, em diferentes áreas. A antiga Lei das Sociedades Anônimas (DL 2.627 de 1940) individualiza a responsabilidade dos seus administradores quando agem com dolo, culpa ou com violação da lei ou dos estatutos (art. 121). Por outro lado, o comando do artigo 158 da atual Lei das Sociedades Anônimas (Lei Nº 6.404 de 15.12.76), igualmente estabelece que o administrador responde civilmente pelos prejuizos que causar na gestão da empresa, quando proceder com culpa ou dolo, ou com violação da lei ou estatuto.
No Código Tributário Nacional, (Lei Nº 5.172/66), encontramos no comando do artigo 134, VII, que “os sócios em casos de liquidação da sociedade de pessoas, respondem solidariamente pelos débitos fiscais da empresa”. Igualmente, os gerentes, diretores ou representantes das pessoas jurídicas de direito privado são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias, resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto (cf. art. 135, II).
Esxurge, forte ainda, no artigo 18 da Lei do Abuso do Poder Econômico (Lei Nº 8.884/94, sendo também recepcionada pelo Código de Defesa do Consumidor ao comandar em seu artigo 28 “verbis”:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”

E também no Código Civil em seu artigo 50 (art. 20 do CC/16), ao comandar:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público quando couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

A jurisprudência nacional, inobstante ainda ser escassa sobre o tema, mas, forçoso é reconhecer-se, que, paulatinamente vem se firmando na recepção do instituto. Tanto é assim, que o Supremo Tribunal Federal, ao dirimir querela sobre o poder da “holding” em relação à alienação de ações da subsidiária, invocou a doutrina americana da desconsideração da pessoa jurídica (cf. RE 88.591, RTJ 93/320).
Também, julgando o RHC 54.411, reconheceu a responsabilidade do diretor de fato que se oculta atrás da nomeação de “homem-de-palha” para o cargo de diretor, o que, evidentemente, nada tem a ver com a “disregard doctrine”, mas que serve para demonstrar que mesmo no Brasil a disposição prevista no artigo 50 do Código Civil (art. 20, caput, do Códex Civil de 1916), não é absoluta, principalmente quando ocorrer fraude, tanto que o Pretório Excelso, nesse caso, transferiu a responsabilidade para o autor da fraude (RTJ 78/752).4
Indubitavelmente, na hipótese, o STF, aplicou ao caso a teoria norte-americana da “dummy corporation”.

  1. PESSUPOSTOS DE APLICABILIDADE DA DOUTRINA PELO JUDICIÁRIO.

“A disregard doctrine”, como já se disse linhas supra, surgiu da necessidade de se encontrar mecanismos de proteção, contra o mau uso da sociedade mercantil.
A autonomia patrimonial decorrente do comando do artigo 20 do Código Civil, ou seja, a dualidade da personalidade jurídica da sociedade mercantil e de seu sócio tem sido explorada para a manipulação de fraudes várias ou abuso de direito. Quando tal acontece, outro caminho não há que não seja a desconsideração da pessoa jurídica para se alcançar o fraudador ou abusador do direito.
Os casos de aplicação do instituto são ainda ampliados, na hipótese de falências, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da sociedade mercantil, tudo provocado por má administração. É bem verdade, que a legislação pertinente ao instituto, mas precisamente o comando normativo do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, refere-se apenas à situação em que a vítima seja um consumidor, ou quando se cuidar de crime contra a ordem econômica. Todavia, o aplicador do direito, pelo princípio da analogia e, obedecido o Due Process of law, pode estender a desconsideração da personalidade jurídica para outras áreas similares, e até mesmo em situações falimentares.
De bom alvitre lembrar, que a aplicação da “disregard doctrine”, não é regra absoluta, pois encontra limites quando do exercício da atividade jurisdicional. É o que leciona Fábio Ulhoa Coelho, ao discorrer que, “somente quando a pessoa jurídica for utilizada para a realização de uma fraude ou abuso de direito é que o juiz está autorizado a ignorá-la. O simples prejuízo de terceiros em razão da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais nunca será por si só, fundamento para a desconsideração. Sem elemento subjetivo, intencional, destinado a ocultar a ilicitude atrás da pessoa jurídica, não há como superar a autonomia patrimonial que a caracterize. Se inexiste fraude ou abuso de direito, a personalização da sociedade, associação ou fundação deve ser amplamente prestigiada.5
Não é diferente o pensamento de Rubens Requião, para quem, “diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou abuso de direito, ou se deve desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos e abusivos.6
Outro pressuposto a ser observado na aplicação do instituto, é o fato de que no caso concreto não há supressão da sociedade, nem tão pouco se considera ela nula. Apenas, em casos especiais, declara-se ineficaz determinado ato, ou se regula a questão de modo diverso das regras habituais, dando mais realce à pessoa do sócio ou gestor do que à sociedade.

  1. CONCLUSÃO

De acordo com os ensinamentos doutrinários, a legislação pátria e o acervo jurisprudencial, aplicáveis ao tema em comento podemos concluir que:
  1. A “disregard of legal entity” é de grande alcance e eficiência para impedir o abuso e as fraudes lato sensu;
  2. O instituto deve ser aplicado apenas nos casos concretos;
  3. Só deve ser invocada quando os sócios e/ou gestores utilizarem a sociedade com má-fé, comprovando-se a fraude ou abuso de direito ou ainda afronta à lei;
  4. A responsabilidade do sócio na aplicação do instituto é ilimitada.

11 REQUIÃO, Rubens. – Aspectos Modernos de Direito Comercial – Saraiva -, São Paulo, 1977.
2 OLIVEIRA, Lamartine Corrêa. – A dupla face da pessoa jurídica – Saraiva -, São Paulo.
3 COELHO, Fábio Ulhoa. – A desconsideração da Personalidade Jurídica – Revista dos Tribunais -, Forense, São Paulo, 1989.
4 LIMBORÇO, Lauro – “DISREGARD OF LEGAL ENTITY” – Artigo publicado na RT – 579 , p. 27.

5 COELHO, Fábio Ulhoa – A desconsideração da Personalidade Jurídica – Forense – São Paulo, 1989.
6 REQUIÃO, Rubens – Aspectos Modernos de Direito Comercial, p. 70 – Saraiva -, São Paulo, 1977.


sexta-feira, 15 de abril de 2011

INTERPRETAÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NO SISTEMA CIVIL BRASILEIRO

Um dos temas jurídicos tratados no atual Código Civil e de grande implicação no cotidiano dos jurisdicionados é inerente ao chamado abuso de direito. O art. 187 do Diploma Substantivo Civil comanda que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes”.  
A redação do dispositivo confunde inquestionavelmente abuso de direito com ato ilícito, dando àquele tratamento de ilícito, quando, de acordo com a melhor e mais moderna doutrina, são institutos totalmente distintos. Na verdade conforme pondera Heloisa Carpena (Abuso de direito nos contratos de consumo. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 58), o legislador misturou os dois institutos, analisando-os apenas pelos efeitos, o que pode tornar insuficiente a sanção atribuída aos casos de abuso de direito.
O abuso de direito ocorre, quando uma pessoa, ao exercer direito legítimo excede os limites impostos por seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Uma pessoa tem o direito de construir em seu terreno, dentro dos limites legais. Acontece que, mesmo respeitando esses limites, certo indivíduo constrói em seu imóvel, com o objetivo manifesto, de dificultar o trânsito do vizinho. Estaria assim cometendo abuso de direito. O ato é formalmente correto, porquanto a conduta do agente se deu dentro dos limites formais de seu direito, está assim preenchida a estrutura normativa do direito, entretanto foram ultrapassados os limites da boa-fé; não foi cumprido o valor normativo que é o fundamento de validade do direito.
No ato ilícito, o agente pratica ato contrário ao Direito, que, nem na aparência, se pode confundir com o exercício legítimo de direito subjetivo. Se o cidadão mata alguém, ou se por culpa bate o carro, não está exercendo nenhum direito fora dos limites; está agindo contra o Direito, pura e simplesmente. Se tanto no abuso de direito, quanto no ato ilícito, o agente pratica ato antijurídico, no abuso de direito, há o exercício legítimo de um direito subjetivo, que ultrapassa certos limites, enquanto no ato ilícito, tal não ocorre. Em outra dicção, o ato ilícito nada tem de exercício legítimo de direito.
Em alguns casos, o ato ilícito pode derivar do exercício de um direito, que ultrapassa seus limites formais. Tome-se como exemplo o fato de uma pessoa dirigir em alta velocidade e acima do permitido para o local. Estará praticando ilícito administrativo, posto que ao exercer o seu direito de dirigir, violou o limite formal de velocidade. Não se trata de abuso de direito, uma vez que o ato é formalmente antijurídico. Ninguém tem o direito legítimo de dirigir acima da velocidade razoavelmente permitida. Mas, ao contrário, se uma pessoa, propositadamente, dirige em velocidade extremamente baixa, com o objetivo de travar o trânsito, estará cometendo abuso de direito. É que, na aparência o ato é perfeito, legítimo. Formalmente, essa pessoa não está cometendo nenhuma antijuridicidade. Ocorre que, do ponto de vista valorativo, está ultrapassando os limites impostos pela boa-fé.
A distinção entre os dois institutos em estudo é de importância impar para os operadores do direito, porquanto as conseqüências do ato abusivo podem ser diferentes das do ato ilícito.
A prática do ato ilícito, em regra gera o dever de indenizar, salvo as excludentes de caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima. Já o abuso de direito, pode gerar a obrigação de indenizar, como pode derivar para outra espécie de sanção. Tudo dependerá do caso concreto.
Nos exemplos acima citados, notadamente o último, as conseqüências do abuso de direito ao dirigir em baixa velocidade serão idênticas à de um ato ilícito: o culpado deverá indenizar os danos eventualmente causados a terceiros. Mas se tomarmos outro exemplo, veremos que não será a indenização a conseqüência. Imagine-se um contrato em que uma pessoa se obriga a realizar para outra, serviços de pintura ou de marcenaria, incumbindo ao credor dos serviços a escolha. Este, de má-fé, sabendo que será muito mais dificultoso para o devedor realizar os serviços de pintura, escolhe estes últimos, com a nítida intenção de prejudicar o devedor, onerando-o excessivamente. Nesse caso, o credor está agindo dentro dos limites formais de seu direito de escolher. Todavia, foram, desenganadamente violados os limites da boa-fé. Diante disso, poderá o devedor, provando a má-fé do credor, ou seja, provando o abuso de direito, exigir judicialmente que o credor aceite os serviços de pintura, ou libere-o da obrigação. No caso, não há que se falar em indenização, uma vez que não houve dano. Vê-se, pois, que, nesta hipótese de abuso de direito, as conseqüências foram diferentes das de um ato ilícito.
Diante do exposto, penso, cumprir aos operadores do direito, e mais precisamente aos seus aplicadores – juízes – não confundir os dois institutos, como fez o legislador civil de 2002.

JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA
Juiz de Direito – Especialista em Direito Civil – Prof.º. do UNIPÊ.



A INCONSTITUCIONALIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 1° DA LEI PENAL TRIBUTÁRIA BRASILEIRA.

No Estado Democrático de Direito não é admissível que o legislador incrimine qualquer comportamento, a seu alvedrio, descrevendo-o em lei, sob o pretexto de que assim ter-se-á atendido o requisito básico do Direito Penal, consubstanciado na fórmula nullum crimem nulla poena sine lege, denominado tecnicamente de princípio da reserva legal, recepcionado nos comandos dos arts. 5º, XXXIX, da CF e 1º do CP. De fato não basta a previsão legal de uma conduta acoplada a uma pena para torná-la criminosa, porque o Direito é um todo harmônico, encimada pela Constituição, de maneira que a norma penal precisa atender aos princípios firmados na Lei Maior, não sendo, portanto possível que o legislador apene um comportamento que ela permita. O princípio em estudo surgiu historicamente sob o impulso do constitucionalismo, que avassalou o Ocidente na esteira da Revolução Francesa. Anteriormente, o absolutismo real não conhecia essa limitação, sendo lícito aos monarcas de então a prisão de qualquer súdito que não pertencesse a nobreza por simples determinação denominada na França lettre de cachet, independentemente de prévia lei incriminadora ou de acusação formal.
Na modernidade, e isso é o óbvio, se fosse permitido ao legislador incriminar qualquer conduta imaginável, desde que sob a veste da lei, não se pode negar que se estaria regredindo à época pré – revolucionária, apenas com o diferencial de que o legislador necessitaria de uma lei, enquanto ao monarca absolutista das eras passadas suficiente seria expedir uma ordem individual. Em verdade, no Estado de Direito, o requisito basilar de qualquer lei é a conformidade da norma com a Constituição, qualquer que seja a matéria tratada.
No âmbito das leis penais tributárias, adverte BLUMENSTEIN (in. Sistema di diritto delle imposte, Milano, Giuffrè, 1954, p. 287), que “em amplos círculos a consciência popular ainda se recusa a reconhecer as infrações às normas do Direito dos impostos como verdadeiros e próprios ilícitos penais, nelas vendo antes uma forma de defesa da liberdade natural contra as regras coativas do Fisco”.
A lição do conspícuo tributarista, segundo JUARY C. SILVA (Elementos de Direito Penal Tributário, Saraiva, 1998), parece encontrar ressonância indiscutível no Brasil, tanto assim que ao exame da constitucionalidade dos dispositivos da Lei 8.237/90, a certeza lógica de que alguns deles estão flagrantemente em descompasso da Magna Carta.
Adverte o escolialista que as figuras penais do art. 1º dessa lei não se integram apenas mediante as condutas previstas nos incisos I a V, senão através da ação geral referida no caput mais a conduta particular contida nos incisos. De fato o núcleo do tipo do inciso V do art. 1º da Lei 8.137/90, que prevê a pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa, é descrito como a conduta de “negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornece-la em desacordo com a legislação”. Já o parágrafo único do mesmo dispositivo legal determina que “a falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo máximo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V”.
A exegese do dispositivo nos leva à convicção de que o legislador tributarista não foi feliz em sua intenção porquanto a fatispécie do inciso V não se refere a exigência de autoridade, resumindo-se à negativa ou omissão de fornecimento de nota fiscal ou equivalente, ou fornecimento desta em desacordo com a legislação; logo, a exigência decorre da própria lei, dispensando qualquer ato de autoridade.
O preceito torna-se ainda mais absurdo quando autoriza a que o prazo de cumprimento da exigência seja reduzido pela autoridade, dos dez dias previstos para “horas”, indeterminadamente, “em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou dificuldade quanto ao atendimento da exigência”, equiparando essa conduta omissiva à infração prevista no inciso V do artigo, o que levou JUARY C. SILVA (1998, p. 121) a afirmar que, “em substância esse parágrafo não se filia dogmaticamente ao caput, como de boa técnica legislativa, e, mirabile dictu, erige mera omissão a figura típica penal, a critério do Fisco, algo que, tanto quanto se saiba nenhum regime autocrático jamais fez no mundo ocidental”.
Dentro do contexto, não se há de negar que o dispositivo em comento fere escandalosamente o princípio da reserva legal, ao deixar a colmatação da fatispécie penal ao arbítrio de autoridade administrativa, o que implica dizer que faz tabula rasa do princípio iluminístico consagrado na fórmula nullum crimem sine lege, como é do Direito Positivo brasileiro. Esqueceu-se o legislador de que em todas as figuras dos incisos a completude da fatispécie inicia-se como a conduta nele prevista de “suprimir ou reduzir tributo”. Sem ela, os comportamentos descritos nos incisos tornam-se penalmente irrelevantes.
Matéria penal, como é de conhecimento basilar, é de Direito estrito, de modo que a incriminação deve ser precisa caracterizando nitidamente a conduta visada, sem necessidade de recurso a ato específico de autoridade e tampouco sendo admissível a variação da fatispécie, ao talante da autoridade. Assentes tais pressupostos, que ao menos aparentemente ninguém contesta, forçoso é concluir-se que o parágrafo único do art. 1º da Lei 8.137/90, padece de manifesta inconstitucionalidade, por não se amoldar ao requisito da legalidade, que se diga, não se confunde com a simples redação sob a forma da lei, exigindo, outrossim, conteúdo pertinente aos comandos incriminatórios e compatibilizados com princípios insertos no texto constitucional.

JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA
Juiz de Direito – Especialista em D. Civil – Prof.º do UNIPÊ

quinta-feira, 14 de abril de 2011

ALCANCE DA COISA JULGADA E EFEITOS DA SENTENÇA EM RELAÇÃO ÀS PARTES E AOS TERCEIROS.

A problemática dos efeitos da sentença e do alcance da coisa julgada é indiscutivelmente um dos temas mais polêmicos e, sem dúvida, um dos mais importantes para a ciência do processo civil, porquanto há depender de como se recepciona os institutos na realidade fática dos jurisdicionados, decorre inquestionavelmente a segurança jurídica, não se permitindo seja o ato decisório desprezado pelo mesmo ou por outro juízo.
Compreendido que a sentença é o pronunciamento judicial que implica uma das situações previstas nos artigos 267 e 269, CPC, pondo-se se fim ao processo na instância sem julgamento do mérito (art. 267); ou resolvendo-se o mérito acolhendo ou rejeitando no todo ou em parte o pedido autoral (art. 269); faz-se mister que em ato seguinte seja verificado qual o principal efeito por ela gerado, na hipótese de não ser atacada por qualquer recurso judicial (ou, tendo sido, com a rejeição ou o inacolhimento de seus argumentos).
O artigo 467 do Digesto Processual Civil define a coisa julgada material como “a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”. Com tal definição, pretendeu o legislador indicar que a imutabilidade protege a sentença, tornando-a indiscutível nos processos futuros, somente poderá ter lugar, depois de formar-se sobre ela a coisa julgada formal; ou seja, a coisa julgada material pressupõe a coisa julgada formal. Por outras palavras, para que haja imutabilidade da sentença no futuro, primeiro é necessário conseguir-se sua indiscutibilidade na própria relação jurídica de onde ela provém.
Complementa a noção de coisa julgada o artigo 468 do Código ao comandar que, “a sentença que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas”. Esta força de lei é que define o que seja a coisa julgada material.
A interpretação teleológica do dispositivo em comento nos deixa à certeza de que à força da sentença transitada em julgada irradia-se em uma eficácia que atinge apenas as pessoas que foram partes no processo (art. 472 do CPC), não podendo os efeitos da sentença beneficiar ou prejudicar terceiros que não tenham de qualquer forma tomado assento na ação judicial.
Isto ocorrendo dar-se ao terceiro a prerrogativa de se opor ao ato judicial que lhe impõe indevida constrição judicial através do instrumento de embargos de terceiro (art. 1.046 do CPC) ou mesmo da ação rescisória ou anulatória (art. 485, 487, inciso II, e 486 do CPC), consoante a natureza jurídica da sentença, sem falar da possibilidade de ser interposto recurso de terceiro, conforme faculta o art. 499 da Lei de Ritos.
De ressaltar que na hipótese de o terceiro ser prejudicado pelo pronunciamento judicial proferido em processo do qual não foi citado, nem muito menos participou, não se exige a obrigatória interposição de recurso cabível, podendo desprezá-lo, partindo para a impetração de mandado de segurança, uma vez caracterizada a ilegalidade, o direito líquido e certo do impetrante e o exercício do direito de ação dentro do prazo decadencial a que alude a lei de regência (Lei nº 1.533/51).
Problema interessante e que surge no dia a dia forense, ocorre quando alguém que não foi parte no processo cognitivo vem a ser atingido em ato de execução de sentença que se afirma já transitada em julgado, não cabendo mais recurso ou mandado de segurança, interpõe objeção de pré – executividade, visando mortificar a sentença e por via de conseqüência à própria execução.
Duas questões emergem, de plano, para o deslinde da lide: a) a primeira, no tocante ao cabimento e prazo da exceção de pré – executividade em si, a despeito de não intentada ação rescisória e de haver suposto transito em julgado da decisão que se pretende declarar nula; b) a segunda, no que concerne a possibilidade de desconstituir sentença de mérito mediante ação diversa da rescisória.
Quanto às referidas questões, dúvida não há de que a tese da "querela nullitatis" e da "actio in integram restitutio contra rem iudicatam" persistem vigentes no Direito Brasileiro. Já dizia PONTES DE MIRANDA a respeito da aparente imutabilidade da coisa julgada e dos remédios processuais para desconstituí-la o seguinte:
"Levou-se muito longe a noção de res iudicata, chegando-se ao absurdo de querê-la capaz de criar uma outra realidade, fazer de albo nigrum e mudar falsum in verum. No entanto, a coisa julgada atende à necessidade de certa estabilidade, de ordem, que evite o moto-contínuo das demandas com a mesma causa."
(........)
"Também nula ipso iure é a (sentença) ferida de morte por alguma impossibilidade: cognoscitiva (sentença incompreensível, ilegível, indeterminável), lógica (sentença invencivelmente contraditória), moral (sentença incompatível com a execução ou a eficácia, como a que ordenasse a escravidão ou convertesse dívida civil em prisão, coisa inconfundível com a detenção civil nos casos especiais da legislação), jurídica (sentença que cria direitos reais além daqueles que o direito permite, como, em Direito civil brasileiro, o fideicomisso do 3º grau).
3. Os meios para se evitar qualquer investida por parte de quem tenha em mão sentença inexistente ou nula ipso iure são os seguintes:
I. Autor, reconvinte, réu ou reconvindo ou qualquer pessoa que litigou subjetivamente à relação jurídica processual, pode volver a juízo, exercer o seu direito público subjetivo, com os mesmos pressupostos de pessoa, objeto e causa, sem que se lhe possa opor, com proveito, a res iudicata: as sentenças inexistentes e as nulas ipso iure é que não produzem coisa julgada.(...........)
II. Opor-se a qualquer ato de execução, por embargos do executado ou por simples petição: porque, ainda que impossível a prestação, há o ingresso à execução: a sentença de prestação impossível não dá, nem tira; mas, como aparência, vai até onde se lhe declare (note-se bem: declare) a impossibilidade cognoscitiva, lógica, moral ou jurídica.
III. Usando-se o remédio rescisório, a corte julgadora ou o juiz singular (se for o caso, segundo a respectiva legislação processual), na preliminar de conhecimento ou, se juntos preliminar e mérito, no julgamento de iudicium rescindens, dirá que o autor não tem a ação rescisória, que tende à anulação das sentenças, mas a sentença que se pretendia rescindir é inexistente ou nula ipso iure."
Eduardo Juan Couture escreveu sobre a admissibilidade e meios da revisão judicial das sentenças cobertas pela coisa julgada, particularmente em relação a ordenamentos jurídicos, como o do Uruguai, àquele tempo cuja lei não consagrava de modo expresso essa possibilidade. Preocupavam o Príncipe dos processualistas latino-americanos as repercussões que a fraude pudesse projetar sobre a situação jurídica das pessoas (partes ou terceiros), ainda mais quando os resultados da conduta fraudulenta estivessem reforçados pela autoridade da coisa julgada. Disse, a propósito desse elegante tema, que “a consagração da fraude é o desprestígio máximo e a negação do direito, fonte incessante de descontentamento do povo e burla à lei”. Maneja o sugestivo conceito de coisa julgada delinqüente e diz que, “se fecharmos os caminhos para a desconstituição das sentenças passadas em julgado, acabaremos por outorgar uma carta de cidadania e legitimidade à fraude processual e às formas delituosas do processo”. E disse também, de modo enfático: “chegará um dia em que as forças vitais que o rodeiam [rodeiam o jurista] exigirão dele um ato de coragem capaz de pôr à prova suas meditações”.
Da lição dos mestres citados, pois, a certeza de que na visão dos fatos trazidos à colação, quando a parte não foi citada ou não participou do processo cognitivo a sentença nela prolatada é nula pleno iures, é inexistente e, portanto nula é a execução à falta de título executivo, podendo ser argüida a nulidade mediante a objeção de pré – executividade.
É pacífico o entendimento de que a exceção de pré – executividade ou como alguns chamam objeção de pré – executividade, é criação doutrinária - jurisprudencial, que tem por finalidade a declaração da imprestabilidade do título que ampara a execução, sem a necessidade de oferecimento de embargos do devedor, ante a manifesta ausência dos requisitos que lhe emprestam força executiva – liquidez, exigibilidade e certeza – ou de nulidade evidente e flagrante, cujo reconhecimento independa de dilação probatória que não a documental.
Para o manuseio desse novel instituto de defesa do suposto devedor, não há prazo preclusivo. Em qualquer tempo ou grau de jurisdição é possível o manejo da exceção, posto que as questões de ordem pública, como os pressupostos processuais e as condições da ação, podem ser opostas a qualquer momento no processo, a teor dos arts. 267, § 3º e 303, III, ambos do CPC e art. 193 do Código Civil.
Sobre o assunto, veja-se o que já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 147.769 – SP, em voto do Sr. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL. ANULAÇÃO DE AÇÃO DEMOLITÓRIA POR FALTA DE CITAÇÃO DOS LITISCONSORTES NECESSÁRIOS. NÃO FORMAÇÃO DA RELAÇÃO PROCESSUAL VÁLIDA. POSSIBILIDADE DE ANULAÇÃO. NULIDADE PLENO IURE. INTERESSE. RECURSO PROVIDO.
I – Os condôminos do imóvel têm manifesto interesse na ação que pretende a demolição do bem, principalmente se a sentença nessa ação fixa a obrigação de destruir o imóvel do qual todos detêm a propriedade.
II – A nulidade pleno iure deve ser apreciada pelo órgão julgador mesmo de ofício, não se sujeitando a coisa julgada, como ocorre na ausência de citação, salvo eventual suprimento, comunicando-se os atos subseqüentes.
III – A citação como ato essencial ao devido processo legal, à garantia e segurança do processo como instrumento de jurisdição, deve observar os requisitos legais, pena de nulidade quando não suprido o vício, o qual deve ser apreciado em qualquer época ou via.
Em seu lapidar voto cujo trecho peço vênia à transcrição, ao se reportar ao ato nulo pleno iure, o Sr. Ministro relator assim se expressou:
Como atos nulos pleno iure, vamos descortinar especialmente os praticados em causas nas quais não se formou a relação processual, a exemplo do que ocorre em feitos desprovidos de citação válida, estando ausente o réu, ou quando não citados todos os litisconsortes necessários ...
A distinção dos atos nulos pleno iure com os absolutamente nulos reside no fato de que nestes há o processo, enquanto naqueles não se forma a relação processual.
Na nulidade processual, ipse iure, o vício é mais grave porque atinge a própria relação processual, que sequer se forma. O vício nunca será sepultado pela preclusão, dispensando-se até mesmo a via da ação rescisória. Assim, não citado, validamente, o réu, ou o litisconsorte necessário (também réu), salvo na hipótese de comparecimento espontâneo, suprindo-se o vício, não haverá processo; logo, não haverá relação processual em relação a eles, nem a sentença (que é ato processual). Não havendo sentença válida, não haverá coisa julgada. Logo, o vício não convalesce sequer pelo fenômeno da rés judicata”.
Vê-se, pois, que se o jurisdicionado não foi citado no processo de conhecimento que gerou a sentença executada, ou não integrou a relação processual, por via de conseqüência exsurge forte a nulidade processual ipse iure, de sorte que inexiste título (sentença) a ser executado, e, portanto, nula a execução a teor do artigo 618 do Código de Processo Civil, sendo obrigação de o órgão julgador reconhecer a nulidade de ofício em qualquer fase do processo ou grau de jurisdição, por se cuidar de matéria de ordem pública, impostergável, portanto, o seu reconhecimento.
Todavia se o órgão julgador não reconhecer de ofício a nulidade, a parte prejudicada terá a seu dispor a objeção de pré-executividade, para fins de obter a tutela jurisdicional declarando-se a nulidade da sentença e por via de supedâneo da própria execução.
A propósito no leading case no Resp 100.998-SP (DJ 21/6/99) em que foi relator o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, o Superior Tribunal de Justiça, decidiu em acórdão assim ementado:
Processual civil. Execução por título judicial. Argüição de nulidade da citação na fase cognitiva, pela autora – exeqüente. Possibilidade. Nulidade pleno iure. Interesse. Recurso provido.
I A nulidade pleno iure deve ser apreciada pelo órgão julgador mesmo de ofício, não se sujeitando a coisa julgada, como é o caso do defeito de citação, salvo eventual suprimento, comunicando-se aos autos subseqüentes.
II – A citação, como ato essencial ao devido processo legal, à garantia e segurança do processo como instrumento de jurisdição, deve observar os requisitos legais, pena de nulidade quando não suprido o vício, o qual deve ser apreciado mesmo no curso da execução da sentença.
Igualmente no RMS nº 1.986 – RJ (DJ 5.4.93), em que foi relator o Ministro Barros Monteiro assim ementado:
Mandado de segurança contra ato judicial. Sentença proferida em processo nulo pleno iure por falta de citação do réu.
Nulo de pleno direito é o processo que se fizer sem a citação da parte. Conseqüentemente, inexistindo sentença válida, não há que se falar em coisa julgada. Cabimento do mandado de segurança por ofensa a direito liquido e certo do impetrante, presentes ainda os requisitos do “fumus boni iuris” e do periculum in mora. Recurso ordinário provido”.
Destarte, e ante os ensinamentos abalizados dos mestres citados, bem assim do entendimento pretoriano esposado, chega-se as seguintes conclusões:
  1. O que a coisa julgada impede é a propositura de uma ação idêntica à demanda encerrada e imunizada pelos efeitos da sentença judicial não impugnada (ou, tendo sido, com a rejeição do recurso correspondente), ou seja, como afirma Misael Montenegro Filho, “apresente as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. Havendo variação dos elementos, não se há de falar em fenômeno da coisa julgada” (in. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I, p. 597. São Paulo: ATLAS, 2005).
  2. A coisa julgada atinge as partes do processo (art. 472 do CPC), não podendo os efeitos da sentença beneficiar ou prejudicar terceiros que não tenham integrado a relação processual cognitiva.
  3. Se o terceiro que não foi citado ou não tomou assento na ação judicial vier a ser prejudicado pela sentença, poderá opor-se ao ato judicial que lhe impor constrição de bens através de embargos de terceiros (art. 1.046 do CPC),ou mesmo ação rescisória ou anulatória (art. 487, II e 486)conforme a natureza jurídica da sentença (condenatória ou homologatória, sem falar da possibilidade da possibilidade de ser interposto recurso pelo terceiro, consoante a faculdade prevista no art. 499 do CPC.
  4. Na hipótese de o terceiro não integrante da ação cognitiva ser prejudicado pelo pronunciamento judicial, não se exige a obrigação de interposição de recurso cabível, podendo despreza-lo, partindo para impetração de mandado de segurança, uma vez caracterizada a ilegalidade, assente o direito líquido e certo do impetrante e o exercício do direito de ação dentro do prazo decadencial a que alude a lei de regência (Lei nº 1.533/51).
  5. Se ultrapassado o prazo decadencial de que cuida o art. 18 da lei mandamental, e estando o feito em fase de execução de sentença, poderá ainda ser utilizado pelo terceiro prejudicado, o instituto da objeção de pré-executividade, vez que inexiste título contra quem não participou do processo cognitivo, sendo a execução nula de pleno direito a teor do art. 618 do CPC.

JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA

A DEFESA DO EXECUTADO EM SEDE DE CUMPRIMENTO DA SENTENÇA QUE CONDENOU A PAGAR QUANTIA CERTA À LUZ DA LEI Nº 11.232, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2005.

A Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005, em vigor desde o dia 22 de junho do ano em curso impôs severa e substancial modificação no panorama da execução por quantia certa. É o que expressa o artigo 475-J do Digesto Processual Civil, com a redação da lei enfocada ao comandar que, “caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de 15 (quinze) dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no artigo 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandando de penhora e avaliação”.
A interpretação teleológica do dispositivo nos leva à certeza de que se a pretensão do autor da demanda se apoiar em sentença judicial impositiva da obrigação de pagar, o credor não se submete ao ingresso de nova ação judicial (ação de execução), posto o garantido estará o recebimento do seu crédito por meio de singelo cumprimento do pronunciamento judicial, a ser realizado através de atos instrumentais.
Assim ocorre em face de o processo cognitivo dentro da nova sistemática processual ter se tornado bifásico, apresentando uma fase de conhecimento, onde se busca o acertamento do direito em favor do autor ou do réu, e uma fase seguinte à sentença de mérito para simples cumprimento do dispositivo sentencial, ante à recalcitrância do devedor em adimplir espontaneamente o comando imposto pelo Estado – Juiz.
A nova ordem ao meu sentir, ao alterar radicalmente o sistema de execução por quantia certa, qualificando-a como fase do processo de conhecimento posterior à sentença de mérito, e não mais como ação autônoma, dispensa a citação do devedor na fase inicial da pretensão de cumprimento da decisão judicial, operando-se a penhora de bens que integram o seu patrimônio, sem que lhe seja deferida a prerrogativa existente na lei anterior de indicar bens à serem alcançados pela constrição judicial. A execução, como ação judicial autônoma, fica reservada, doravante, apenas aos títulos executivos extrajudiciais.
Da leitura do novo modelo processual a percepção de que a alteração também alcançou o âmbito da defesa do executado, que na hipótese de sentença condenatória, não mais se será exercitada por meio da ação incidental autônoma de embargos, mas sim como defesa endoprocessual, a que o legislador reformista intitulou de impugnação, consoante emerge do comando do § 1º do artigo 475 – J do CPC.
Emerge do novo texto que da penhora e avaliação será de imediato intimado o executado, na pessoa de seu advogado, ou, na falta deste, o seu representante legal, ou pessoalmente por mandado ou pelo correio, podendo, oferecer impugnação, querendo no prazo de quinze (15) dias.
Por seu turno as matérias que podem ser alegadas na impugnação, nos termos do artigo 475-L, só poderão versar sobre, a falta ou nulidade de citação, se o processo correu à revelia; inexigibilidade do título; penhora incorreta ou avaliação errônea; ilegitimidade de partes; excesso de execução; qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação, como novação, compensação, transação ou prescrição desde que superveniente à sentença.
Na hipótese de a impugnação versar sobre excesso de execução, deverá o impugnante a teor do § 2º do mesmo dispositivo legal declarar de imediato o valor que entende correto, sob pena de rejeição liminar da impugnação.
Notável modificação inserida no sistema processual é inerente ao efeito da impugnação, que a teor do artigo 475 – M, não terá efeito suspensivo, o que demonstra a tendência do legislador em conferir a máxima efetividade ao cumprimento da sentença, diferentemente do que ocorria com os embargos, que por ter efeito suspensivo, obrigatoriamente paralisava a instância executiva, fazendo com que os processos se eternizassem nas prateleiras dos cartórios.
A regra, todavia, não é absoluta, porquanto o juiz poderá atribuir efeito suspensivo à impugnação, desde que relevantes seus fundamentos e o prosseguimento da execução seja manifestamente suscetível de causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação.
De ressaltar, que, nos termos do § 1º do mesmo artigo 475-M, ainda que tenha sido conferido efeito suspensivo à impugnação, é lícito ao exeqüente requerer o prosseguimento da execução, desde que preste caução, suficiente e idônea arbitrada pelo juiz.
Do exposto não se pode olvidar que a ordem processual inerente ao cumprimento da sentença, veio conferir uma máxima efetividade às decisões judiciais.

JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA.
Juiz de Direito – Prof. Do UNIPE – Juiz Presidente da 2ª Turma Recursal do Juizado Especial Misto de João Pessoa – PB.




ASPECTOS HISTÓRICOS E SOCIAS DO ABORTO

O termo “aborto” provém do latim aboriri e significa “separar do lugar adequado”. As mais remotas observações de que se tem notícia sobre métodos abortivos datam do século XXVIII antes de Cristo, tendo sido descobertos na China.
Com o passar dos séculos, o abortamento provocado foi estudado e discutido entre diversos povos antigos. Os israelitas, os povos mesopotâmicos, os gregos e os romanos preocuparam-se com o aborto, mas não chegaram a dar à questão o aspecto de “crime”, limitando-se a considerações de cunho moral.
Hipócrates, o grande gênio da incipiente medicina antiga, estudou não somente o quadro clínico do aborto, como estendeu sua preocupação ao tratamento e métodos para induzi-lo. Tal atitude, analisada em si mesma, traduz-se em frontal choque com o clássico juramento do grande estudioso, até hoje repetido com orgulho por formandos das Faculdades de Medicina de todo o mundo.
Tema tido como inquestionavelmente polêmico, o aborto de há muito vem sendo discutido, ora sendo apontado como problema, ora como solução. A verdade é que os povos primitivos ou não o previam ou, posteriormente, incriminavam-no com duríssimas penas. A aceitação do aborto como exceção à regra geral da proibição surge com extrema raridade em algumas legislações antigas, mas inapelavelmente condicionadas ao preenchimento de determinados e rigorosos requisitos.
Em termos concretos, é clarividente que as práticas abortivas sempre foram exercitadas em todo o planeta terra. Reprovadas pela grande maioria dos povos, foram, todavia, aceitas durante certo período em outras civilizações, sob o pretexto de que serviriam pra controlar o aumento populacional, que naquela época já preocupava os estudiosos.
Os primeiros opositores às práticas abortivas visavam defender não apenas o ser humano em formação (nascituro), mas igualmente a gestante e antes de tudo a própria sociedade, em virtude de o direito que lhe assiste de ter novos cidadãos.
O Talmud, um dos primeiros códigos surgidos em todos os tempos, depositário das mais arraigadas tradições dos rabinos, não fez qualquer referência ao ato de abortar, caminho igualmente seguido por outro documento de priscas eras: o Pentateuco.
A Bíblia sagrada encerra em seu âmago punições a quem praticar ou deixar que seja efetuado o aborto. É o que se observa no livro do Êxodo, capítulo XXI, versículos 20 a 22. Há quem afirme, porém, que o comando contido no livro do Êxodo, constitui reflexo do estatuído no Código de Hamurabi, pois, este, considerado o mais antigo dos diplomas de cunho jurídico, previa indenizações em casos de aborto provocado, cujo valor variava ocorresse ou não a morte da mulher. A punição era ainda mais exemplar na hipótese de o aborto resultar em morte de mulher livre, quando então a filha do provocador também seria morta.
O Egito antigo carecia de previsão pertinente ao aborto. Posteriormente, na Lei de Manu, aplicada na índia, surgiu cogitação de aborto como prática criminosa. Se dele resultasse a morte de mulher pertencente à casta dos padres, o responsável seria castigado como se houvesse ceifado a vida de um Brahmane, submetendo-o a penas corporais que, em grau máximo, chegariam à morte.
Os assírios puniam severamente as práticas abortivas, de forma que se aplicava a pena de morte a quem fizesse abortar mulher que ainda não tivesse filhos. Pena desmedida infligia-se também à mulher que se submetesse a tais manobras sem consentimento do marido, consistindo a punição na empalação, do que resultava a morte.
Na Pérsia, o livro de Zend Avesta, seguido como código de conduta pelo povo, adotou o sistema de repressão aos pais, tidos como responsáveis em conjunto pelo aborto praticado pela filha. Eram os pais da mulher que praticasse o aborto, expostos à execração pública e, por fim, executados.
Entre gregos e romanos, estóicos e cínicos, doutrinadores da época, chegaram ao extremo de aconselhar a prática ilimitada do aborto, orientação logo reprimida com a intervenção dos legisladores, que atuaram no sentido de criar leis que salvaguardassem os interesses do pai e da sociedade. A preocupação dos legisladores de então, como se observa, direcionava-se à preocupação com o pai do nascituro e até mesmo com a comunidade, todavia, não ouvia qualquer voz em defesa da gestante, eis que as mulheres daquele tempo eram tidas como verdadeiro objeto sem maior valor. Todavia se a gravidez ocorresse fora do matrimônio, a situação jurídica mudava, porquanto, tanto gregos como romanos não hesitavam em aconselhar a prática abortiva.
Os filósofos Aristóteles e Platão, pregavam a utilidade do aborto como meio de conter o aumento populacional, para eles, fonte inesgotável de miséria. Aristóteles, todavia, sugeria que se praticasse o aborto antes que o feto tivesse recebido sentidos e vida, sem, especificar, contudo, quando se daria esse momento.
Nos primórdios de Roma, a punição em relação ao aborto assumiu caráter privado, já que o pater familiae, expressão que designava o pai, o chefe da família, tinha poder absoluto sobre a vida de seus filhos, e, portanto, dos que nasceriam. Caso a mulher procurasse abortar sem o consentimento do pater familiae, este poderia puni-la severamente, inclusive com a morte.
À época da Republica romana, o aborto foi considerado ato imoral; entretanto, teve larga utilização entre mulheres que se preocupavam com a aparência física, que durante determinado período assumiu grande importância no meio social romano, vaidade herdada do tempo do império. Cresceu tanto o número de abortos devidos àquela causa que sem demora os legisladores passaram a considerá-los como crimes.
Com conseqüência disso, a Lei Cornélia cominou pena de morte à mulher que consentisse com a prática abortiva. Quanto aos que a executavam, previu pena igual, com a possibilidade de aplicação de pena menor caso não ocorresse a morte da gestante em função do aborto.
O Surgimento do Cristianismo alterou profundamente a visão que se tinha a respeito do aborto, em outra dicção, trouxe uma visão diversa na conceituação do aborto, haja vista o dogma, a crença de que o homem possuía uma alma imortal, que do Criador do Universo emanava e a ele retornaria após a morte. Além do que, sendo o homem um ser criado à imagem e semelhança de Deus, não deveria ter o poder de vida e morte sobre o seu semelhante, atributo cabível única e exclusivamente ao Criador.

JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA
Juiz de Direito – Especialista em Direito – Prof.º do UNIPÊ.

APLICAÇÕES PRÁTICAS DO DIREITO INTERTEMPORAL À LUZ DAS INCONSTITUCIONALIDADES DE DISPOSITIVOS DO NOVO CÓDIGO CIVIL

                           Todas as leis novas exigem comentário, na medida de sua importância. Não há texto límpido, a ponto de dispensar exegese. Os códigos, sobremaneira, por sua amplitude, exigem estudo de seu sistema, mais do que análise de suas disposições isoladas.
No caso do novo Código Civil Pátrio, inegável que apesar dos cuidados do legislador em adaptar o projeto do Código de 1975, à Carta Magna de 1988, algo de incompatível com o novo ordenamento constitucional permaneceu devendo ser repelido pela consciência jurídica geral. É na segunda parte do artigo 2.035 do Código Civil que vamos encontrar uma dessas incompatibilidades vertical.
Segundo a dicção do citado art. 2.035, “a validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor do Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução”.
Como se vê a primeira parte do dispositivo contém o óbvio. Os atos jurídicos consolidados antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002 estarão sob a égide da lei anterior. A segunda parte, todavia, que tentou solucionar a questão de direito intertemporal não alcançou o seu intento. Ao pretender o legislador, que os efeitos dos negócios jurídicos ocorridos depois da vigência do novel Estatuto Substantivo, a ele se subordinem, mortificou o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.
Resplandece de forma cristalina a incompatibilidade vertical entre o comando do artigo 2.035 do CC e o dispositivo constitucional retro citado. Aquele está a se referir, notadamente aos contratos de execução diferida, continuada ou de trato sucessivo.
Também a multa condominial recepcionada no § 1º do artigo 1.336, da Lei Substantiva Civil, mesmo sendo norma de ordem pública, mas se tratando de Condomínio celebrado por convenção dos interessados, não pode retroagir para alcançar os pactos firmados sob a égide do código de 1916; só podendo ser aplicada para os condomínios criados após a entrada em vigor do novo Código Civil.
É assim porquanto é do conhecimento geral que, pelo princípio “tempus regit actum”, se o contrato foi celebrado sob a existência de uma lei, ainda que seus efeitos ocorram no futuro, durante nova lei, ditos efeitos não se submetem à lei posterior. O contrato fica subjugado à lei do tempo em que houve a celebração, a consumação do pacto.
Este é o pensamento de Paul Roubier que, inobstante entender que a lei tem aplicação imediata e geral, ressalva os contratos de trato sucessivo. Para o mestre francês, se um contrato de execução continuada foi celebrado em uma determinada época, a lei a ser aplicada é a da época em que o contrato foi ajustado.
Em corolário ao entendimento de Roubier, o Excelso Pretório, julgando a ADIn 493 – DF, em erudito voto do Min. Moreira Alves, pontificou: “Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado. O disposto no artigo 5º, XXXVI, da CF se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. Precedente do STF. Ocorrência, no caso de violação de direito “adquirido”(JSTF – Lex 168/70)”.
Partilha do mesmo entendimento Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil, 5º ed., 1980, p. 132-133); Orlando Gomes (Questões Mais Recentes de Direito Privado, Saraiva, 1988, p. 4, item 3); J.M. Othon Sidou (O direito legal, 1985, Forense, p. 228-229, item XIII); Serpa Lopes (Curso de Direito Civil, vol. I, p. 191-192).
Da lição dos mestres citados a certeza de que, em sendo os contratos de trato sucessivo que sobreviveram ao novo código, ou melhor, cujos efeitos se protraem e protrairão no tempo mesmo depois da vigência do Código Civil de 2002, não gozarão de aplicação imediata e geral a nova legislação. Ainda estarão jungidas ao Código de 1916. É de se deixar claro, porém, que se for de consumo a relação contratual, a aplicação é da lei 8.078/90.
Dentro do contexto penso, sem embargos de outras opiniões mais abalizadas que tanto o artigo 2.035 em sua parte final, como o 1.336, § 1º, ambos do Código Civil, são incompatíveis com o comando do artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal e, portanto, não poderá subsistir, nem tampouco merecer aplicação por parte dos juízes e tribunais. Todo contrato celebrado na vigência do Código Civil de 1916 (excetuando-se aqueles albergados pelo Código de Defesa do Consumidor), mesmo que de trato sucessivo, terão aplicação em vista da lei anterior e não do Código de 2002.
Em outras palavras e diante da insofismável tendência da intangibilidade do ato jurídico perfeito é que os efeitos dos negócios jurídicos que venha a se perfazer durante a vigência do Código Civil de 2002 a este Diploma não se subordinam. Inquestionavelmente o Código de 1916 continuará sendo aplicado como proteção ao ato jurídico perfeito celebrado sob sua égide. Somente assim a segurança, a certeza, e a justiça contratual gozarão de plenitude e eficácia consolidando o Estado de Direito.
A posição unânime e clarividente do Supremo Tribunal Federal e o consolidado entendimento doutrinário e pretoriano de que é retroativa a lei nova que pretende alcançar os efeitos futuros de negócios jurídicos conduzem o aplicador do direito a não recear na declaração de que os comandos dos artigos 2.035 e 1.336, § 1º do atual Código Civil padecem de um grave vício de inconstitucionalidade.

JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA
Juiz de Direito – Especialista em D. Civil – Prof.º do UNIPÊ.

O PRINCÍPIO DO EQUÍLIBRIO CONTRATUAL NO CODIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.

O Código de Defesa do Consumidor engloba uma série de regras das quais se deduz o princípio do equilíbrio contratual absoluto. De acordo com esse princípio, o contrato não pode estabelecer desmesuradamente prerrogativas ao fornecedor sem fixar iguais vantagens ao consumidor.
É defeso uma das partes na relação jurídica de consumo, obter vantagem manifestamente excessiva em detrimento da outra. Por essa razão foi atribuída a nulidade de pleno direito à cláusula que, em desfavor do consumidor, vem estabelecer obrigações iníquas, abusivas, que o coloquem em desvantagem exagerada (art. 51, IV, do CDC).
O princípio enfocado tem como fundamento a proteção da parte mais fraca da relação contratual consumerista, porque visa colocar em situação de equilíbrio pessoas social e economicamente distintas.
Cláudia Lima Marques (Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p. 88), relaciona o princípio da autonomia da vontade ao do equilíbrio contratual, sustentando que a decadência do voluntarismo no direito privado levou à relativização dos conceitos, de tal modo que o direito dos contratos, face às novas realidades econômicas, políticas e sociais teve de se adaptar e ganhar uma nova função, qual seja, a de procurar a realização da justiça e do equilibro contratual.
Advoga Fernando Noronha (Contratos de Consumo, padronizados e de adesão, p. 93), que o princípio da justiça contratual tem por finalidade a realização de um efetivo equilíbrio entre direitos e obrigações da partes (justiça substancial) nos contatos comutativos, que são de longe os mais importantes. Tal equilíbrio não poderá, porém, suprimir a liberdade das partes e destruir a autonomia privada, nem afetar a segurança das transações, que é pressuposto da boa – fé.
O princípio do equilíbrio contratual absoluto implica ainda revitalização do sinalagma inerente aos contratos bilaterais. Isso significa que a equivalência entre prestação e contraprestação veio adquirir destaque especial, por servir de parâmetro para a verificação do enriquecimento sem causa de uma das partes.
Trata-se de equilibro absoluto porque a lei passou a exigir, na relação contratual, o equilíbrio substancial, de sorte que nenhuma das partes tenha significativamente mais direitos e vantagens que a outra (justiça substancial). Isso significa dizer que não é suficiente a igualdade formal pressuposta no momento antecedente à conclusão do contrato (justiça formal), para que a justiça contratual seja alcançada.
Essa noção de equilíbrio contratual redunda em dois tipos de critérios utilizados para a verificação das cláusulas abusivas, quais sejam: o do desequilíbrio econômico e o do desequilíbrio significativo entre direitos e deveres. Tem relevância o estudo do tema a medida que os contratos de adesão, tais como de empréstimo bancário, cartão de crédito, compra e venda de veículos com alienação fiduciária, de compra e venda de imóveis, e outros largamente utilizados no mundo globalizado, colocam o consumidor em excessiva desvantagem em relação ao fornecedor do produto e serviços, o que leva muitas das vezes a dificultar o acesso do consumidor à sua defesa na esfera do Judiciário, como é o caso da cláusula de eleição de foro.






JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA
Juiz de Direito – Especialista em D. Civil – Prof.º do UNIPÊ.

O PRINCÍPIO DA GRATUIDADE JUDICIAL COMO SUSTENTÁCULO DO ESTADO DE DIREITO.

O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional recepcionado pelo ordenamento constitucional Pátrio, tem por escopo conceder a todos os súditos um livre acesso ao Judiciário, de sorte a não se criar obstáculos ao cidadão na busca do seu direito na seara jurisdicional.
Mas para que tal princípio se torne efetivo, faz-se mister a observância de um princípio transcendental inerente à assistência jurídica integral.
Segundo preleciona Rui Portanova (2005, p. 84), atribui-se à justiça inglesa a etiqueta sarcástica Justice is open to all, like the Ritz Hotel (A justiça está aberta a todos, como o hotel Ritz). Não deve estar longe da verdade internacional.
Em rigor, como ensina Ruy Armando Gessinger (1992, p. 177), bater às portas da Justiça não deveria custar nada. O acesso à jurisdição, penso, deveria ser o mais fácil possível para assegurar esse direito fundamental do cidadão, garantidor dos direitos dos indivíduos, dos direitos ético-sociais e dos direitos políticos.
A expressão assistência judiciária surgiu pela primeira vez no ordenamento jurídico constitucional brasileiro, no art. 113 da Carta da República de 1934. De notar, que ainda não havia a consagração constitucional do princípio do acesso ao Poder Judiciário, só ocorrido em 1946, todavia, a gratuidade já era garantida. A Carta autoritária de 1937 se fez silente sobre o tema, entretanto, o benefício da gratuidade era regulado pelo Código de Processo Civil em seu artigo 68 e seguintes. A matéria voltou ao plano constitucional com o advento da Constituição de 1946, no § 35 do artigo 141. Em 1950, exsurge a Lei 1.060, que continua em pleno vigor, disciplinando especificamente a matéria com várias modificações. Na Carta de 1967 e na Emenda nº 01/69, também há expressa previsão à gratuidade judicial.
Hodiernamente, com o advento da Constituição Cidadã de 1988, como a chamava Ulisses Guimarães, a gratuidade está ampliada consideravelmente, tanto que foi inserida no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais e no Capítulo dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. É o que estatue o inc. LXXIV do art. 5º ao prevê que “o Estado Prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
A ampliação veio na dialética da expressão assistência jurídica integral. Assim, está assegurada a gratuidade para a promoção de ações judiciais, e também para os serviços extrajudiciais. A amplitude do conceito de assistência jurídica integral viabiliza pensar-se, inclusive, na possibilidade de dispensa dos depósitos prévios nos casos de recursos e ações rescisórias (CPC, art. 488, II).
À clássica distinção entre assistência judiciária e benefício da justiça gratuita, pode-se acrescentar a assistência jurídica integral. Com efeito, Pontes de Miranda (1986, p. 601) ensinava que assistência judiciária e benefício da justiça gratuita não são a mesma coisa. “O benefício da justiça gratuita é direito à dispensa provisória de despesa, exercível em relação jurídica processual, perante o juiz que promete a prestação jurisdicional. Já a assistência judiciária é como se chama o serviço da organização estatal, ou paraestatal, que tem por fim, ao lado da dispensa provisória das despesas, a indicação de advogado”.
Atualmente, afora os dois conceitos, pode-se recepcionar, outro mais abrangente que é o da assistência jurídica integral. Trata-se de verdadeira garantia fundamental, com mais amplitude, transformada em direito constitucionalmente assegurado. Assim, além de abrir as portas do Judiciário, são garantidos os serviços advocatícios de organizações estatais, não – estatais e até individual do advogado que se proponha a atender o necessitado.
Impende ser ressaltado que a assistência jurídica integral garante aos pobres também o acesso gratuito aos serviços extrajudiciais, como registro civil de nascimento e certidão de óbito (CR, art. 5º, inc. LXXVI). Incluem-se na franquia: a instauração em movimentação de processos administrativos, perante quaisquer órgãos públicos, em todos os níveis; os atos notariais e quaisquer outros de natureza jurídica, praticados extrajudicialmente; a prestação de serviço de consultoria, ou seja, de informação e aconselhamento em assuntos jurídicos. Acresça-se, ainda, que são gratuitas as ações de hábeas corpus e hábeas data e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania (CR, art. 5º, inc. LXXVII) e o acesso aos Juizados Especiais de Pequenas Causas.
Finalmente é de se concluir que se o benefício da justiça gratuita é instituto pré-processual e assistência judiciária é instituto de direito administrativo, não se pode olvidar ser a assistência jurídica integral uma garantia fundamental de aplicação geral constitucionalmente assegurada e de importância vital ao Estado Democrático de Direito.

JOSIVALDO FÉLIX DE OLIVEIRA
Juiz de Direito – Prof.º do UNIPÊ – Especialista em D. Civil